Mandaram-me sentar na
sala dos espelhos, não me sentei por razões de desobediência, não
gosto, detesto, e o meu irmão
- de espelhos?
não parvalhão, o
problema não são os espelhos, mas simplesmente não gosto que me
obriguem a sentar quando me apetece ficar de pé, não gosto,
detesto, não gosto das noites sem música, não gosto das noites sem
livros, e não gosto das noites quando o meu mano querido se disfarça
de alfinete de dama, e dou com ele agarradinho à minha lapela, com
medo de cair, o meu querido mano
- de espelhos? De
espelhos, às portas, de mesas compridas com cadeiras muito altas, de
corredores e no final dos carris a casa de banho, a sanita, o vide e
a banheira, o solitário lavatório, e uma janela com vista para o
pátio das perdizes envenenadas pelos professores de literatura, os
livros poeirentos empilhados até ao tecto onde de vez em quando uma
trapezista aposentada desenferruja as cartilagens recordando alguns
dos números praticados no bar dos morcegos quando disfarçada de
gaivota voava sobre as mesas semeadas de gajos embriagados, com
minhocas esfomeadas suspensas dos lábios de aço,
a noite é triste,
Ouvia-o segredar-me ao ouvido, agarradinho à minha lapela e
sentia-lhe o aço das mãos de pérola dos mares clandestinos, a
minha mãe
- perdi o teu irmão numa
noite de tempestade, Viste-o, não lhe respondi, nunca tive coragem
de lhe dizer que ele se tinha transformado em alfinete de dama e que
vivia agarradinho à minha lapela, coitada, ainda hoje, na sala dos
espelhos, ainda hoje na sala dos espelhos ouvem-se aqui e ali ou
acolá algumas delas, em gotinhas ou drageias, e maldita próstata,
para a diabetes, corações apaixonados, ou partidos, ou
despedaçados, chás, drageias, tudo que eu precisava à distância
de um clique, próxima paragem Cais do Sodré, a noite, tua, vestida
de tempestade, viste-o?, e pergunto-me porque tenho de me preocupar
com um irmão que nunca tive, e pergunto-me porque tenho de me
preocupar com um irmão que nunca vi, apalpei, toquei
nos teus braços minha
querida quando descias o Chiado,
- o meu querido mano a
olhar os barcos de papel e a contar quantos pássaros tem uma tarde
em Lisboa, milhares dizia-me ele
muitos, e alguns andam
disfarçados de candeeiros e quando regressa a noite da cidade dos
espelhos com salas com paredes de espelhos, com a minha mãe a afagar
um alfinete de dama pensando ser o meu irmão, eu
- ele na janela do
perfume, o gesso em cio nas árvores mortas pelo cansaço da maré
eu não percebendo que um
alfinete de dama raramente é gente, homem, irmão, companheiro ou
amante, mas ela
- eu acredito em ti meu
filho,
o meu irmão
- qual filho?
eu não percebendo que um
alfinete de dama raramente é gente, homem, irmão, companheiro ou
amante, mas ela descia o Chiado, viste-o?, e pergunto-me porque tenho
de me preocupar com um irmão que nunca tive, e pergunto-me porque
tenho de me preocupar com um irmão que nunca vi, apalpei, toquei,
como as persianas da insónia quando cismam em não desaparecerem das
noites sombrias do silêncio adamastor que o meu irmão inventado e
disfarçado de alfinete de dama me perguntava, o meu irmão
perguntava-me
- qual filho?
o meu irmão incrédulo
na minha lapela e ela, e ela descendo o Chiado acreditava que tinha
um filho, eu, ele, ela, Qual filho? Entre as ruas desabitadas da
cidade iluminada pelos faróis clandestinos que o inverno semeia nas
planícies da loucura,
- nos teus braços minha
querida quando descias o Chiado,
mandaram-me sentar na
sala dos espelhos, não me sentei por razões de desobediência, não
gosto, detesto, e o meu irmão adormeceu sem me dar um beijo, sem que
eu o tocasse ou simplesmente o olhasse, não se mexeu, cerrou os
olhos de metal e desapareceu na claridade das estrelas de vidro.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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