Sempre vivi embrulhado a uma manta de solidão, sempre
- Porquê a mim? Tive sorte,
Que alguém entra na minha vida crescem raízes de vergonha, sempre que desce a noite sobre a seara do amor alguém sente vergonha de como eu sou e vivo, mas não me importo, não me importo porque a minha miséria pertence-me, herdei-a à nascença nas ruas de luanda,
O velho Armindo às voltas com a roda dos dias e das horas e dos minutos e dos segundos, coitado, o velho Armindo esqueceu-se da manivela das horas
- Porquê a mim?,
E nasci às sete horas e trinta minutos, quando tenho a certeza que se não fosse a inércia do velho desdentado e coxo e agarrado à próstata,
- Tive sorte,
Eu tinha nascido ao meio dia em ponto, e a parteira no intervalo das torradas e café com leite,
- Puxe Puxe que está quase,
Fiquei entalado entre as sete horas e vinte e nove minutos e as sete horas e trinta minutos, esfrego os olhinhos e ouve-se a minha primeira caralhada
- Só mais um pouco Puxe com força…
Foda-se,
A parteira encolhe os ombros e de volta às torradas e café com leite tropeça no meu pai quase a desfalecer,
- É um menino,
É gorducho e malcriado,
- Olha… Desmaiou Deve ser da emoção,
Os cigarros transpiram e dissolvem-se-lhe na algibeira da camisa, que alguém entra na minha vida crescem raízes de vergonha, sempre que desce a noite sobre a seara do amor alguém sente vergonha de como eu sou e vivo, mas não me importo, não me importo porque a minha miséria pertence-me
- É minha e É minha e É minha,
Herdei-a
- Estás a dormir Armindo? E que não Não estou a dormir apenas descanso os olhos…
Pertence-me porque herdei-a nas ruas de luanda quando sentado na esplanada do Baleizão um aglomerado de silêncio embateu contra a esplanada, o meu pai desfaleceu e tombou sobre o pavimento térreo do musseque,
- Era domingo e estava sol
Herdei-a não se cansava de gritar o gorducho remelado à porta do púbis e a proferir insultos à parteira,
Foda-se,
- E às sete horas e trinta minutos
Onde estás Armindo?
- E às sete horas e trinta minutos procuro a janela da maternidade e olho pela primeira vez a cidade, e os machimbombos de mão dada a borboletas encarnadas e caracóis loiros, como as gajas de Cais de Sodré, sentadas em mesas imaginárias à pesca de taças de champanhe e copos de uísque,
Armindo
- O primeiro cálice da noite o primeiro cigarro da noite o primeiro desejo da noite E pergunto-me, Porquê eu?,
Tiveste sorte Responde-me o velho Armindo,
- Que alguém entra na minha vida crescem raízes de vergonha, sempre que desce a noite sobre a seara do amor alguém sente vergonha de como eu sou e vivo, mas não me importo, não me importo porque a minha miséria pertence-me, herdei-a à nascença nas ruas de luanda,
Se te fosses foder Armindo…
(texto de ficção)
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