sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Natal

 

É quase Natal

Querida mãe

É quase Natal e recordo

O teu rosto de tristeza

Quando me davas o teu presente

E eu

Quase não lhe ligava

Ficavas triste

Tinhas ciúmes do pai

Porque apenas com um livro de mil escudos

Conseguia fazer do filho o homem mais feliz do Universo

Enquanto tu

Com roupa de quase vinte contos

Qual feliz

Quero lá eu saber da roupa

E as lágrimas incendiavam o teu cabelo

 

É quase Natal

Querida mãe

E o teu menino jesus

Está de castigo

Dentro de uma caixa

Talvez

Para toda a vida

 

É quase Natal

Querida mãe

E cada livro que o pai me deu

Escrevi nele

Uma dedicatória secreta

E quando sinto saudades

Leio-as

Todas

De todos os Natais

E de todos os meus aniversários

Quanto á tua roupa

Onde andará ela

 

É quase Natal

Querida mãe

E estou de guarda à biblioteca

Não vá aparecer o pai

Como fazia em todos os Natais

Como fazia em todos os meus aniversários

Entrava lá

Em silêncio

E procurava um autor

Ou um título

Para verificar se eu o tinha

E se não o tivesse

Comprava-o

 

Como vês

Querida mãe

É quase Natal

E hoje talvez ainda sintas ciúmes do pai

Talvez

Porque é quase Natal

Querida mãe

E das janelas de nossa casa

Já não se vê o mar.

 

 

22/12/2023

Sexta-feira

 

A pilinha do menino

Da Senhora Anunciação

Está de luto

Na companhia de sua mão

Que bruto

Graças a Deus misericordioso

O dia acordou

O dia nasceu

Não morreu

E verificou

Que o menino

Tinha ar de jeitoso

 

Que o menino

Não passava de um assassino

E diplomado

E pensava

Como acordar a pilinha deste pobre menino

 

A mão

Aos pouquinhos

Morreu

E o menino então

Pegou nos porquinhos

E subiu ao Céu

 

A pilinha do menino

Da Senhora Anunciação

Está de luto

Pois claro madame das montanhas adocicadas

Coitada da pilinha em sua mão

Triste e cansada das alvoradas

Neste nobre vulto

Deste menino tão culto

E puro

E filho da puta às sextas-feiras.

 

22/12/2023

Idália

 

Idália descalçada

Na calçada de viver

Idália enamorada

No dia de sofrer

 

Quando o dia

É um punhado de nenúfares envenenados

Idália não gosta de poesia

E tão pouco gosta de gatos assanhados

 

Idália é foda (cordeiro assado)

Na mesa de comer

Que agora é moda

 

Idália é fome

E palavras de escrever

Nas mãos daqueles que não têm nome

 

 

22/12/2023

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

O poeta de Cristo

 

A floresta virgem

Maria de seu nome

Com três filhos marujos

Com muita fome

Maria arregalada

Desterrada

Descanhota

Por este mundo de amargura

E podem pensar

Vossemecês

Que há muitos ujos

Mas ujo só há um

O de S. Mamede de Ribatua

E apenas um

E mais nenhum

Como a lua

Há só uma lua

A minha

Que anda pelas ruas

Nua

Da ternura ternurenta canção de embalar

Furibunda

Como a Maria amortalhada

Com três pimpolhos

Com três lâminas de barbear

 

E uma espingarda

Virgem é a floresta

Dos acoites

Das marés de sémen

Quando da montanha

Regressa Cristo

Ressuscitado

Bem vestido

E bem barbeado

 

Não sei se Cristo acaba de nascer

De acordar ao fim de três dias

Tantos como os filhos marujos de Maria

Tantas como as palavras que aprendeu a escrever

 

Na ardósia da vida

Cristo tinha um poeta

O Fontinha

Que tal como o miradouro do Ujo

Também era único

Também ele

Nasceu ao terceiro dia

Da primeira madrugada

E enquanto seu pai se masturbava

Sua mãe

Desenhava no chão térreo do infortúnio

A oitava maravilha da alvorada

Uma é encarnada

Outra é pólvora

E pum

 

Pum

Cristo descruza as mãos

Puxa de um cigarro

Acende-o

E exclama…

Amanhã é sexta-feira

É feira

O que vender não sei

Talvez comprasse um burrinho

Insuflável

E com rodinhas de embalar

 

E nos olhos

Uma lâmpada encarnada

Abrimos apenas depois da meia-noite

E encerramos

Pela madrugada

Claro que Cristo

Não gostava

Mas eu

Eu gostava

De me olhar no espelho

Eu nu

Tentando esconder os ossos

No cortinado da alvorada

 

Cristo

Não precisava

Tinha medo de lhe tocar

De foder ao som do poema que nunca será terminado

Enquanto o poeta contava estórias sem melodia

Tristonhas

E às vezes

Não sabia

Não sentia

Os quatros ventos a assoprar

Nos costados de Maria

 

E aos poucos

O poeta se fodia

 

Viva a escultura

Morte à poesia

Viva o cinema´

Animado

Sem filhos

Com cara de espantalho

Migra

Desce da cadeira

Grita

E morre junto ao seu nome

 

Que ninguém sabia

Que conhecia

Dito ser e de málaga amedrente mulher

Diamantes

E o oiro da civilização

E as esmeraldas

Da maldição

Como dizia AL Berto

“não sei se o soldado falha o degrau do eléctrico que vai para a Ajuda

Ou se fode ou não ajuda

Tão triste Mário

Lisboa e um apito”

E dito

Ou não dito

Cristo veio a mim

Cristo

Pela primeira vez

Me abraçou tanto

Tanto

Meu pai

Que até pensei que estava a sonhar

 

Mas a sonhar não estava

Nem a dormir

Nem a comer

Borboletas

E palhacitos ao pequeno-almoço

Quê do poeta?

Senhor Santo Cristo!

E Cristo responde que não sabia

Se soubesse não o dizia

Que apenas se interessava

Por poesia

Claro que Cristo

Gostava de poesia

De fumar charros à varanda

Ou à janela

E todos os anos

Pelo Natal

Escondia-se numa pequena arca

Cor-de-rosa

Com um pequeno orifício

De onde espreitava o mar

 

O poeta

Fodia-se a cada verso escrito

A cada janela aberta

Com o silêncio travestido de azul-marinho

Ia descalço

E acreditava

Que pelo caminho

Iria encontrar

Um outro poeta

Um outro menino

 

E acreditava

O parvalhão do menino

Que pelo Natal acorda a amizade

E meia hora depois

Morre a amizade

Fode-se o poeta

E no letreiro sobre a porta

Tinha escrito o menino

Que se foda o Natal

 

E também o Natal não sabia

Que o poeta

E o menino

Eram filhos

Do mesmo destino

 

E que destino

 

O deste menino

 

Ser poeta

Ser o poeta de Cristo.

 

 

21/12/2023

Porque tem olhos verdes

 

O comboio suicida-se contra a inocente sombra que a noite vomita

Há um ferido poético

Dois feridos ausentes e sem memória

Uma das carruagens

Em estado de hipotermia

De tantas horas

Mergulhada no rio

E um morto

Feliz.

 

A vida do comboio

Coitado do comboio

Nos carris da vida

Umas vezes tropeçando no silêncio

Outras mergulhava na esperança de voar

E dizia-se

Quanto lhe perguntavam

Ser ateu

Como eu.

 

Coitado

Do comboio

Tinha mesmo de se suicidar dentro do túnel

Mesmo no seu centro geométrico

Sentado à sua direita

O pai

Está tão feliz

Porque o seu querido filho

Que amava

Alguma vez na vida tomou uma nobre decisão…

Suicidar-se

Pois então

Dentro do túnel

Igual ao do Marão.

 

Apagaram as luzes da noite.

No cemitério

Fotografias e lápides e pedras e árvores e flores e a puta que os pariu…

Todos felizes

Os comboios da minha vida.

 

Levou nas trombas

Foderam-lhe os cornos

Com pedras

Com paus

Com cinza

De cigarro…

E enquanto levava nos cornos

Ria-se perdidinho

Como se o circo que estava estacionado à sua frente

Fosse

O seu único grande amor

Morreu

Suicidou-se o comboio e a comboia

E os filhos

E os netos

E claro

Também os carris morreram

De tédio

De nada fazerem.

 

Coitado daquele comboio.

Que deixei de o ver

Em Santa Apolónia

Muito só

Muito triste

Muito frio

Na algibeira

Que às vezes

Tremia

Tremia à tua beira.

 

Coitado do suicidado comboio

Homem e soldado

Paraquedista nas horas mortas

E agente de autoridade

Quando regressava a noite

E um longo cortinado

De cor envergonhada

Com pintinhas de ausência

Mergulhava-me na espuma

Vestia-me de gato

E subia às árvores.

 

Tinha medo

Do mar.

Da água

Das árvores vestidas de camuflado cinzento

Escondendo magalas

Tropeçando no Inverno

Erguia-se

Baixava-se

E nada

Parecia uma pomba em busca de sol.

 

A cubata era um espaço minguo

Miserável

Mal se podia

Lá dentro

Foder as recordações do musseque

Quando por entre o capim

Um mabeco se despedia do comboio.

 

E todos

Todos

Todos éramos felizes

Eu sou feliz

Tu és feliz

Ele e ela

São muito felizes

Todos

Todos somos muito felizes

Excepto

O comboio

Suicidado

Dentro de um túnel

No seu centro geométrico

Engasgado

Simulando presenças junto ao rio

Inventando borboletas

Palhacinhos ao pequeno-almoço

E nunca esquecer

Três drageias ao deitar.

 

Sebastião

Não queria saber do comboio

Das carruagens

Dos filhos e das filhas

Do terceiro esquerdo

Com lanterna para a meia-noite.

 

Em pó

O café

Bebe-o

E fuma-o

Sobre quatro tábuas de razão

E um pindérico menino passeando uns tristes calções.

 

Me diga

Quem o sabe

Porque nascem comboios

Com olhos verdes

E cabelos silenciados pelo vento?

 

 

 

21/12/2023

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Doutor dos dentes

 

Condenaram-no à morte

Porque escrevia poesia

Porque não tinha sorte

Em cada novo dia

 

Sentaram-no na eléctrica cadeira

E engravataram-no a preceito

E ele coitado imaginou-se junto à ribeira

Em busca de jeito

 

Para ligar

O interruptor

Trazer da distância o mar

 

E todos os barcos doentes

Depois… depois fingiu ser doutor

Doutor dos dentes

 

 

20/12/2023

Sentidos

 

Aqui

Sem ti

Aqui senti o perfume do teu cabelo

Aqui percebo

A melodia das tuas mãos

E a poesia dos teus olhos

Aqui me sento

E te espero

Aqui

Sem ti

Aqui senti o silêncio dos teus lábios

A fragrância do teu corpo

Despido

Nu

Como a lua

Durante a noite

 

 

20/12/2203