O comboio suicida-se
contra a inocente sombra que a noite vomita
Há um ferido poético
Dois feridos ausentes e
sem memória
Uma das carruagens
Em estado de hipotermia
De tantas horas
Mergulhada no rio
E um morto
Feliz.
A vida do comboio
Coitado do comboio
Nos carris da vida
Umas vezes tropeçando no
silêncio
Outras mergulhava na
esperança de voar
E dizia-se
Quanto lhe perguntavam
Ser ateu
Como eu.
Coitado
Do comboio
Tinha mesmo de se
suicidar dentro do túnel
Mesmo no seu centro
geométrico
Sentado à sua direita
O pai
Está tão feliz
Porque o seu querido
filho
Que amava
Alguma vez na vida tomou
uma nobre decisão…
Suicidar-se
Pois então
Dentro do túnel
Igual ao do Marão.
Apagaram as luzes da
noite.
No cemitério
Fotografias e lápides e
pedras e árvores e flores e a puta que os pariu…
Todos felizes
Os comboios da minha
vida.
Levou nas trombas
Foderam-lhe os cornos
Com pedras
Com paus
Com cinza
De cigarro…
E enquanto levava nos
cornos
Ria-se perdidinho
Como se o circo que
estava estacionado à sua frente
Fosse
O seu único grande amor
Morreu
Suicidou-se o comboio e a
comboia
E os filhos
E os netos
E claro
Também os carris morreram
De tédio
De nada fazerem.
Coitado daquele comboio.
Que deixei de o ver
Em Santa Apolónia
Muito só
Muito triste
Muito frio
Na algibeira
Que às vezes
Tremia
Tremia à tua beira.
Coitado do suicidado
comboio
Homem e soldado
Paraquedista nas horas
mortas
E agente de autoridade
Quando regressava a noite
E um longo cortinado
De cor envergonhada
Com pintinhas de ausência
Mergulhava-me na espuma
Vestia-me de gato
E subia às árvores.
Tinha medo
Do mar.
Da água
Das árvores vestidas de
camuflado cinzento
Escondendo magalas
Tropeçando no Inverno
Erguia-se
Baixava-se
E nada
Parecia uma pomba em busca
de sol.
A cubata era um espaço
minguo
Miserável
Mal se podia
Lá dentro
Foder as recordações do
musseque
Quando por entre o capim
Um mabeco se despedia do
comboio.
E todos
Todos
Todos éramos felizes
Eu sou feliz
Tu és feliz
Ele e ela
São muito felizes
Todos
Todos somos muito felizes
Excepto
O comboio
Suicidado
Dentro de um túnel
No seu centro geométrico
Engasgado
Simulando presenças junto
ao rio
Inventando borboletas
Palhacinhos ao
pequeno-almoço
E nunca esquecer
Três drageias ao deitar.
Sebastião
Não queria saber do
comboio
Das carruagens
Dos filhos e das filhas
Do terceiro esquerdo
Com lanterna para a
meia-noite.
Em pó
O café
Bebe-o
E fuma-o
Sobre quatro tábuas de
razão
E um pindérico menino passeando
uns tristes calções.
Me diga
Quem o sabe
Porque nascem comboios
Com olhos verdes
E cabelos silenciados
pelo vento?
21/12/2023
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