quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Porque tem olhos verdes

 

O comboio suicida-se contra a inocente sombra que a noite vomita

Há um ferido poético

Dois feridos ausentes e sem memória

Uma das carruagens

Em estado de hipotermia

De tantas horas

Mergulhada no rio

E um morto

Feliz.

 

A vida do comboio

Coitado do comboio

Nos carris da vida

Umas vezes tropeçando no silêncio

Outras mergulhava na esperança de voar

E dizia-se

Quanto lhe perguntavam

Ser ateu

Como eu.

 

Coitado

Do comboio

Tinha mesmo de se suicidar dentro do túnel

Mesmo no seu centro geométrico

Sentado à sua direita

O pai

Está tão feliz

Porque o seu querido filho

Que amava

Alguma vez na vida tomou uma nobre decisão…

Suicidar-se

Pois então

Dentro do túnel

Igual ao do Marão.

 

Apagaram as luzes da noite.

No cemitério

Fotografias e lápides e pedras e árvores e flores e a puta que os pariu…

Todos felizes

Os comboios da minha vida.

 

Levou nas trombas

Foderam-lhe os cornos

Com pedras

Com paus

Com cinza

De cigarro…

E enquanto levava nos cornos

Ria-se perdidinho

Como se o circo que estava estacionado à sua frente

Fosse

O seu único grande amor

Morreu

Suicidou-se o comboio e a comboia

E os filhos

E os netos

E claro

Também os carris morreram

De tédio

De nada fazerem.

 

Coitado daquele comboio.

Que deixei de o ver

Em Santa Apolónia

Muito só

Muito triste

Muito frio

Na algibeira

Que às vezes

Tremia

Tremia à tua beira.

 

Coitado do suicidado comboio

Homem e soldado

Paraquedista nas horas mortas

E agente de autoridade

Quando regressava a noite

E um longo cortinado

De cor envergonhada

Com pintinhas de ausência

Mergulhava-me na espuma

Vestia-me de gato

E subia às árvores.

 

Tinha medo

Do mar.

Da água

Das árvores vestidas de camuflado cinzento

Escondendo magalas

Tropeçando no Inverno

Erguia-se

Baixava-se

E nada

Parecia uma pomba em busca de sol.

 

A cubata era um espaço minguo

Miserável

Mal se podia

Lá dentro

Foder as recordações do musseque

Quando por entre o capim

Um mabeco se despedia do comboio.

 

E todos

Todos

Todos éramos felizes

Eu sou feliz

Tu és feliz

Ele e ela

São muito felizes

Todos

Todos somos muito felizes

Excepto

O comboio

Suicidado

Dentro de um túnel

No seu centro geométrico

Engasgado

Simulando presenças junto ao rio

Inventando borboletas

Palhacinhos ao pequeno-almoço

E nunca esquecer

Três drageias ao deitar.

 

Sebastião

Não queria saber do comboio

Das carruagens

Dos filhos e das filhas

Do terceiro esquerdo

Com lanterna para a meia-noite.

 

Em pó

O café

Bebe-o

E fuma-o

Sobre quatro tábuas de razão

E um pindérico menino passeando uns tristes calções.

 

Me diga

Quem o sabe

Porque nascem comboios

Com olhos verdes

E cabelos silenciados pelo vento?

 

 

 

21/12/2023

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