quinta-feira, 16 de novembro de 2023

S. Martinho do Porto



Não te peço,

Imploro-te,

Não te peço, mas imploro-te que me perdoes,

Pedacinho de mar

Que se esconde no poema,

Sílaba do meu saber,

Constante adimensional,

Raiz quadrada da manhã,

Não te peço,

Imploro-te,

Não te peço, mas imploro-te que me perdoes,

Pássaro do meu jardim de cartão,

Fotografia do silêncio,

E este cansaço que não cessa,

E esta fogueira que não acorda…

E me leva.

 

Não te peço,

Imploro-te,

Não te peço, mas imploro-te que me perdoes,

Personagem dos meus textos,

Geometria da paixão,

No quadrado,

Do círculo,

Da equação de Deus,

Que me leve…

Não te peço,

Imploro-te que me perdoes,

Gaivota da manhã,

Junto ao mar de S. Martinho do Porto,

Não te peço,

Imploro-te…

Que perdoes a minha forma estranha de viver,

Das palavras,

Nos rabiscos que só as minhas mãos conseguem perceber…

 

Não te peço,

Imploro-te,

Não te peço, mas imploro-te que me perdoes,

Todas as coisas visíveis

E invisíveis,

Como os teus olhos de mar

E os teus lábios de mel.

 

 

16/11/2023

Manhã em teus lábios

 Manhã em teus lábios de perdição

Canção das estrelas e das insígnias disciplinadas

Manhã do meu coração

E das tristes madrugadas.

Manhã em teus lábios de louvor

Dos cansaços amordaçados

Manhã em flor

Na flor dos teus lábios ensonados.

Manhã em teus lábios de perdição

Que se esconde no amanhecer

Da manhã sem pão

Na manhã de escrever.

 

16/11/2023

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Enterro

 Está frio aqui, pá, e, no entanto, durante aproximadamente trinta e seis horas vou ter de aturar todos estes gajos e toas estas gajas, que sinceramente, detesto-os.

Porque estão eles no meu enterro?

Foda-se, nem um cigarro posso fumar, esqueci-me de os trazer, pá, paciência,

É a vida, pá,

É a vida, amigo Gomes,

Olha, olha… olha aquela cabra que não se cansa de chorar, já viste isto, meu?

Foda-se,

Estou as passar-me da cabeça,

Detesto estas merdas, detesto-os a todos e a todas, e ainda por cima vestiram-me um fato, gravata, sapatos pontiagudos, foda-se, pá,

Eu não queria nada disto, amigo Gomes, nada disto.

Olha, olha... olha aquele cabrão com uma coroa de flores…

Ó meu, devem ser caras?

Tudo está caro, pá, até o haxixe.

Foda-se meu, estou fartinho desta merda. Porque nenhum filho da puta coloca um fardo de palha em cima do caixão, e

Cinzas, meu grande amigo; cinzas.

Ó Gomes, faltava cá este, o padre Jorge. Foda-se, e eu que nem cerimónia religiosa queria…

Porra, pá. Porra.

Ele é muito fixe, mas prefiro apenas tomar café com ele no café do Jorge,

Diz-lhe amigo Gomes, diz-lhe…

Ó Gomes?

Diz, pá,

Quem são estes quatro filhos da puta que carregam o meu caixão até ao carro funerário?

Sei lá, pá,

Vieram de Lisboa…

Só me faltava mais esta…

Olha pá, vou tomar banho e daqui a pouco bebemos um copo.

Já sei, pá, és sempre a mesma merda, apreces às vinte e três e cinquenta e cinco e queres ir embora às zero horas…

Foda-se, és sempre a mesma merda.

Cala-te e não percas o caderninho onde desenhei e cataloguei os teus ossos…

Até já, amigo.

 

 

 

15/11/2023

Cubículo

 Escondo-me neste cubículo

E desenho no sombreado das paredes

O som do silêncio.

Puxo de um cigarro.

Escondo-o nos lábios e penso…

 

Penso nos teus olhos enquanto dormem

E sonham com os meus olhos,

Escondo-me neste cubículo

E escrevo no teu corpo

O silêncio das minhas mãos.

 

Escondo-me neste cubículo.

Fumo.

Penso.

Escondo-me neste cubículo

E sonho com os teus lábios sonolentos com sabor a mel…

 

Tenho medo, mãe.

Tenho medo do sonho

E do sono

E da insónia,

Tenho medo, mãe, tenho tanto medo do silêncio

E das mãos do silêncio quando tocam o meu rosto,

 

E este cubículo indiferente a ti e a mim,

Olho-te e pareço um tolo que acredita nos teus olhos,

Quando tu, (tenho tanto medo, mãe), quando tu estás morta e não tens olhos,

Quando eu, estou vivo,

E tal como tu, também não tenho olhos,

Não tenho mãos para escrever,

Não tenho mãos para desenhar,

Não tenho olhos, mãe…

 

Não tenho olhos para te olhar.

 

Este cubículo esconde-me,

Este cubículo é o meu esconderijo,

O nosso, mãe,

Quando os teus papagaios desapareciam no céu,

Tão triste, mãe,

Eu não ter olhos e não conseguir ver os teus olhos…

Eu não ter mãos e não poder escrever-te,

Eu não ter mãos e não poder desenhar-te…

E ver os teus olhos,

Mãe.

E ver os teus olhos nos olhos do mar.

 

 

09-15/11/2023

Infância

 Sentado nesta cadeira cinzenta

Penso na minha infância…

Recordo os finais de tarde

Suspenso no portão

À espera do meu avô e do meu pai,

Penso sentado nesta cadeira cinzenta

Recordo os barcos

Recordo o mar

E os filhos dos barcos,

Recordo os meninos que brincavam comigo

Recordo os meninos que me ensinaram a voar…

Que me ensinaram a olhar a paisagem,

 

Sentado nesta cadeira cinzenta

Penso na minha infância…

Recordo os papagaios em papel colorido

Que a minha mãe construía,

Sentado nesta cadeira cinzenta

Penso e recordo,

Vejo a minha mãe a brincar às escondidas comigo,

Penso e recordo,

Vejo o meu pai a olhar as acácias…

Depois,

Dizia-me que um dia eu ia entender…

Hoje penso e sentado nesta cadeira cinzenta…

Que nunca entendi.

 

 

08/11/2023

O teu nome

 Um rio com o teu nome

Um rio que se esconde

Na curvilínea montanha

Um rio infinito

Que ninguém o apanha

Que corre faminto

Com o teu nome

Este rio que nunca se cansa

Este rio em labirinto

E que sobre ti lança

A prometida herança

Um rio com o teu nome

Com o teu nome meu amor

Um rio de esperança

E que consome

As pétalas dos teus lábios em flor.

 

15/11/2023

terça-feira, 14 de novembro de 2023

O poema da saudade

 Este barco não consegue parar,

Pelas dezasseis horas e trinta minutos, junto à ponte, o corpo dela mergulhava numa poça de sangue do tamanho de uma moeda, ao longe, o apito do comboio a anunciar a vinda da outra margem, baixo-me, pego-lhe na mão e dou-me conta que ainda tinha pulso, e percebo que lentamente, ela ainda respirava,

Pedi ajuda.

Gritava enquanto ligava para o 112, atenderam-me e depois de muitas perguntas, a maior parte delas, eu não sabia responder,

Oiço um forte suspiro mais parecendo um sismo, e deixo de ouvir, deixo de ouvir os barcos, o comboio, deixei de ouvir a minha própria respiração, depois,

Ela morreu.

Este barco não consegue parar, o comandante, homem de meia-idade, com aproximadamente um metro e oitenta centímetros de altura, percorria o convés, de um lado para o outro, fumava cachimbo e trazia na mão uma pequena folha em papel.

O vento trazia-nos a noite e dela absorvíamos as tristes palavras do luar, ela assobiava, ele, de mãos nos bolsos e de passo apressado para enganar a escuridão, ao passar junto ao bar de oficiais, uma sombra desfere-lhe um murro no estômago,

Seu cabrão, só as putas é que andam com as mãos nos bolsos…

Percebi que tinha chegado ao Inferno.

Ela morreu.

Deixa meia-dúzia de pertences e um filho que mantinha escondido num quinto andar de um quarto de pensão, o puto, de seu nome Alfredo, quando começou a desenhar-se na sua mão a noite e vestido de solidão, chorava e gritava pela mãe,

A mãe, de engate em engate, procurava a última côdea de pão que só a noite lhe conseguia dar,

Que tens, Alfredo?

O puto, ouvindo a voz da dona da pensão, calou-se e começou a desenhar nas paredes bolorentas e de gesso do quarto de pensão, as lágrimas do silêncio, e no pavimento,

Desenhou a saudade.

Este barco não consegue parar, trago na mão o poema da saudade, e aproveitando a pausa para encher o cachimbo, dou-me conta que uma criança brinca no convés com um boneco,

Como se chama, ele?

Chapelhudo.

Chama-se chapelhudo.

 

 

14/11/2023