Este barco não consegue parar,
Pelas dezasseis horas e
trinta minutos, junto à ponte, o corpo dela mergulhava numa poça de sangue do
tamanho de uma moeda, ao longe, o apito do comboio a anunciar a vinda da outra
margem, baixo-me, pego-lhe na mão e dou-me conta que ainda tinha pulso, e
percebo que lentamente, ela ainda respirava,
Pedi ajuda.
Gritava enquanto ligava
para o 112, atenderam-me e depois de muitas perguntas, a maior parte delas, eu
não sabia responder,
Oiço um forte suspiro mais
parecendo um sismo, e deixo de ouvir, deixo de ouvir os barcos, o comboio,
deixei de ouvir a minha própria respiração, depois,
Ela morreu.
Este barco não consegue
parar, o comandante, homem de meia-idade, com aproximadamente um metro e
oitenta centímetros de altura, percorria o convés, de um lado para o outro,
fumava cachimbo e trazia na mão uma pequena folha em papel.
O vento trazia-nos a
noite e dela absorvíamos as tristes palavras do luar, ela assobiava, ele, de mãos
nos bolsos e de passo apressado para enganar a escuridão, ao passar junto ao
bar de oficiais, uma sombra desfere-lhe um murro no estômago,
Seu cabrão, só as putas é
que andam com as mãos nos bolsos…
Percebi que tinha chegado
ao Inferno.
Ela morreu.
Deixa meia-dúzia de
pertences e um filho que mantinha escondido num quinto andar de um quarto de
pensão, o puto, de seu nome Alfredo, quando começou a desenhar-se na sua mão a
noite e vestido de solidão, chorava e gritava pela mãe,
A mãe, de engate em
engate, procurava a última côdea de pão que só a noite lhe conseguia dar,
Que tens, Alfredo?
O puto, ouvindo a voz da
dona da pensão, calou-se e começou a desenhar nas paredes bolorentas e de gesso
do quarto de pensão, as lágrimas do silêncio, e no pavimento,
Desenhou a saudade.
Este barco não consegue
parar, trago na mão o poema da saudade, e aproveitando a pausa para encher o
cachimbo, dou-me conta que uma criança brinca no convés com um boneco,
Como se chama, ele?
Chapelhudo.
Chama-se chapelhudo.
14/11/2023