segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Mutamba

Aqui está a folha que escrevo na adocicada noite, a caneta lhe espeto na pedra no peito, uma jaula de luz aprisiona a minha mão, e quero escrever

E escrevo sentido as mandíbulas da sílaba amordaçada, na sílaba

O sexo quase junto à Primavera, quase em combustão

Rua e muro, a sombra de um homem o som de uma gaivota criança em busca do dia,


Aqui, aqui está a folha que escrevo, que rasgo e amachuco, que lanço pela janela, a triste formiga caminhando sobre os carris do próximo amanhecer, sabendo ele

O homem-sombra que junto aos cabelos está o assobio que lhe servirá de um simples aviso

Navegação quase, quase

Quase em delírio.

Barcos afundados no terraço de uma árvore, os lábios


Os lábios tão belos do que a primeira luz da sémen-galáxia, outros habitantes

E tantos outros deuses pendurados no estendal como se fossem rezes à procura do silêncio, e corta-lhes a serra uma cabeça singular, em pijama, 


Os lábios tão belos

Voando sobre a planície voando sobre um quintal de fingir, de brincar

Que desce até à Mutamba, do outro lado

O meu rosto que alguém esqueceu sobre a mesa da esplanada, a minha mãe

O cabelo também lhe vou o cabelo também

O meu pai se esqueceu dele (cabelo) sobre o banco do jardim.

E eu

A contar pássaros todas as noites e 

E a contar estrelas todos os dias. 


Escondo-me de ti, na vergonha alheia 

Quando acordo acreditando que já estou morto,

No entanto, dizem

Que respira e dizem que já nasceu quase

Quase tão morto como aqueles que partiram para a eternidade; e que patético um ateu a falar de eternidade.


Aqui ainda está o papel de há pouco, escorrendo tinta de cada entranha, tossindo como um tuberculoso automóvel em contramão descendo subindo caindo quase sempre, e se levantar

E volta a cair sobre o mar e nada pertence a este livro que é apenas esta folha, já assassinada por mim, e a caneta

Também quase com o mesmo destino que a folha que há pouco assassinei…

Concluo que sou um assassino de folhas e de canetas.


Aqui estava a folha que escrevia na adolescência enganando o relógio com bolachas de água-e-sal, metade de uma drageia ao erguer,

E metade ao deitar. Entre refeições

Tês pétalas de rosa e o olhar de um figo. Pois é,

É muito triste o viver de duas pedras,

E é triste a vida de uma drageia.


Aqui está a folha e a caneta e eu. Os três, dois já assassinados por mim, e talvez

Amanhã eu assassinado por uma torre de igreja ciumenta. Lá

Lá lá

Que faço aqui olhando tanta tinta, tinta que cada vez mais é mais e mais tinta,

Nunca percebi onde esconde tanta tinta uma folha de papel…

Quase cinco litros ou mais…


Aqui está a folha que escrevo na adocicada noite, a caneta lhe espeto na pedra no peito, uma jaula de luz aprisiona a minha mão, e quero escrever


E me disseram para nunca mais escrever.


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