domingo, outubro 06, 2024

As palavras agastadas

 

Sentavas-te nas clarabóias do sorriso insónia madrugada

e eu imaginava-te voando sobre a cidade

voando desesperadamente como quem procura árvores baloiçando no vento de ninguém

em braços de aço sem odor sem fingimento

e, no entanto, tínhamos dentro de nós pequenas papoilas falsificadas

que um comerciante estrangeiro tinha estonteantemente inventado durante a noite desgovernada,

 

Éramos de pano como os cortinados da tia Adosinda

e vestíamo-nos enrolando-nos em palavras doentes com cabeças de néons abandonadas

pelos transeuntes imaginados na loucura das horas da Aspirina após o jantar...

havia uma janela de suor que escorria do teu corpo insuflável

porque das tuas palavras cresciam cravos encarnados como clavículas desperdiçadas depois de morto o esqueleto de água salgada,

 

Chovia-nos como chovem as lágrimas dos pilares de betão

quando do silêncio acordam mangueiras e capim envenenado

tive o mar na minha mão quando criança

como em nós

choviam barcos com plumas e rímel nos olhos transatlânticos em sinais de fumo,

 

Tocávamos cigarros por cigarros

beijávamo-nos dentro de um poço de prazer quando a lua escondia os mapas e as bússolas

que nos impediam de viajar pelas grandes planícies do medo e dos corpos suspensos na morte

chovia-nos como chovem pequenos adereços em papel e havíamos de encontrar uma porta

em fina cerâmica com bilhete para a eternidade...

 

[oiço “Eu Seguro” Samuel Úria e Márcia]

Encontro-me plenamente “SEGURO” porque já partiram os paquetes ensonados

e das poucas ruas ainda acordadas hoje nesta cidade

apenas uma a tua boca de Inferno

saboreando portas e janelas que as rochas transportam para a ilha do desejo

sem sabermos porque choravam os barcos com rímel nos olhos e plumas e cores nas faces rosadas da íngreme tristeza das asas de cartolina com palavras agastadas...

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