quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O destino

O destino estava-lhe traçado no dia em que descia a montanha e um pássaro vestido de noite, abraçou-o

E nunca ninguém o tinha abraçado, tão forte e doce,

Como a noite.

Desconfiou. Temeu o pior.

Dizia-se por aqueles lados, de quando em quando, que uma vez por ano, a noite, abraçava aquele que em breve partiria para o reino dos céus. Horácio não queria acreditar no que iria acontecer

Ao seu filho e único. Como o poeta.

Que não é. Nunca o foi. Nunca o será

Poeta. Poeta, não. Meu querido filho. Pareceis mendigos vestidos de palavras

Poeta não, meu filho.

A carroça dormitava sobre as lajes da eira. O tio Serafim enganava a tarde com um copo de verde ou morangueiro e dentro de um pedaço de broa de milho

Queijo de cabra. Adorava.

Dá um pequeno gole de uísque, poisa a mão sobre a mesa e puxa de um cigarro, pensa e acende-o enquanto ouve o Oceano Pacifico da RFM. Poeta mais louco, não. Meu filho.

Poeta nunca.

A noite agora, é uma puta travestida de luzes, enzóis e chapéus-de-chuva.

Tenho medo do frio, chorava ele. Fernando, o piqueno vai morrer de frio.

Temos de dar um jeito. As coisas vão melhorar,

Chovia lágrimas dentro de casa.

E a noite não passa de uma puta e de uma galdéria de carrossel.

Tínhamos tudo, e hoje apenas meia dúzia de livros, e quem quer livros,

Horácio

Chorava também. Mas por outros motivos.

O piqueno crescia, os sapatos

Às vezes,

Ficavam curtos, mas tudo bem. Amavam-me.

E hoje sou apenas um pedaço desta noite, que nunca sei, quando termina, se é que alguma vez deixará de ser noite,

Em mim.

O rapaz brincava no mar sito num primeiro andar caquéctico mais parecendo um petroleiro em decomposição

Putrefacto, como o poeta.

E o rapaz, ao longe, avistava o Mussulo.

A areia branca do Mussulo.

O tio Serafim, ao fim de dois anos de ausência da aldeia, andando por Lisboa a coçar os tomates, regressa, de fatinho branco e de palhinhas não mão, sorria

E

Oi?

O homem fez acreditar meia aldeia que estava a regressar do Rio de Janeiro.

E se isto não for verdade

Eu morra aqui,

Sentado nesta cadeira. Na cozinha. A saborear o meu uísque.

Às vezes tenho saudades do meu pai. E hoje ainda mais. Gostava de ter falado com ele sobre drogas e outras merdas,

mas o meu pai estava sempre ocupado

A salvar os outros. Não o condeno. Louvo-o.

O Horácio tremia de frio silêncio.

A minha mãe aturava as minhas loucuras e conversávamos sobre drogas e deus. Nunca chegamos a acordo. Quanto a deus, ela acreditava, eu não acreditava nem acredito.

Quanto às drogas,

Isso faz-te mal, meu filho.

Deixa isso. Faz isso por mim.

Ele fez isso por ela.

Mas onde está ela, hoje!

O pobre do silêncio sempre a pedinchar à solidão

Traços de alumínio,

E alguns caracóis.

Oi? Menina, como você cresceu…

O tio Serafim cantava bem o fado, eu, odiava e odeio. Ao cair da noite, junto ao campo de milho, pedacinhos de sombras dançavam sobre a noite,

E eu,

Tio Serafim, o que é aquilo?

São as musas dos poetas.

Fiquei a perceber o mesmo. Subi a rampa e fui dormir. Estava de férias em casa do meu avô Domingos.

O Horácio acreditava que se conseguisse levar o filho da aldeia antes que regressasse a noite,

Talvez ele não fosse já este ano para o reino dos céus. Traçou um plano.

Chamou todos os pássaros e juntos levariam o filho de Horácio para longe da noite.

Puxaram. Puxaram. E era quase noite, e o filho do Horácio ainda estava junto à praia.

Até que apareceu uma menina loira, de olhos azuis como o mar…, olhou o filho de Horácio e

Quase que por magia,

Levou o filho de Horácio para longe da noite.

 

(não sei se publico este texto)

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