quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O roubo das palavras

 

Um pássaro em aço inoxidável

roubou-me todas as palavras

uma árvore de silêncios

roubou-me o coração

e o mar

e o mar acaba de roubar-me a vida

 

a noite roubou-me o amor

e o dia

a noite que caminha estranhamente nos lábios

de uma cobra venenosa

com dentes de verniz

e mãos de tristeza

 

(a noite constrói cobras com olhos azuis

e com o cheiro a capim molhado pelo suor da madrugada)

 

a noite roubou-me o amor

e o dia

e todos os pássaros em aço inoxidável

multiplicam-se nas flores amarrotadas do fim de tarde.

A noite inventada

 

Inventada

a noite inventada

quando desce a madrugada

coitada

ela sem nada

nua e deitada

 

inventada

dentro do desejo das pétalas ancoradas

amada

até às entranhas das noites cansadas

 

os pouquíssimos pontos de luz pigmentando o mar

os barcos de fingir

não se cansam de brincar

não deixam de sorrir

 

ela

inventada

toda nua

coitada

bela

deitada

tua

no vidro à janela

 

(inventada

a noite inventada).

A noite circunflexa das amêndoas com chocolate

 

Acreditava ela na paixão dos homens

e nas sílabas zangadas que a manhã de Outono constrói sobre o mar

acreditava ela que a cidade flutuava nas calçadas enferrujadas

que sobejavam dos pedaços de saliva

que o aço inoxidável da boca

transportava para o jardim da solidão,

 

Acreditava ela na paixão dos homens

que os espelhos dos quartos enfeitados com as luzes dos sonhos

desenhavam na lareira ardósia do silêncio

sem perceber que a paixão existe dentro das mãos de vidro

que os homens

que os homens trazem nas algibeiras de pano amarrotado,

 

o verde incenso das folhas de papel que as árvores comem na madrugada

com todos os pássaros sofrendo os cansaços do vento

da chuva sobre o pequeníssimo orgasmo das palavras

poisam na secretária de madeira

com as fotografias cadáver

da casa abandonada no centro da eira do medo,

 

acreditava ela

a noite circunflexa das amêndoas com chocolate

que os homens vivem nas janelas de papel

com as rosas-púrpuras do desejo

acreditava ela

a noite sem os homens de palha com as estrelas de orvalho...

A fogueira do sono

 

Gotinhas de sorrisos suspensos nos teus lábios

dissipam-se de mim as faúlhas das tempestades de insónia

o fogo imerso no teu ventre

ao redor das tuas coxas cansadas nas planícies do amanhecer

 

quero ser uma abelha

e voar como as gaivotas da minha terra

vestir-me de silêncios de mar

quando os barcos entram no teu púbis

e da janela da saudade

as flores do teu jardim

transformadas em luz

corre

 

foge de mim entre as árvores pintadas nos muros da infância

e junto à Maria da Fonte

olha-me

deixa-me um sorriso para eu recordar em noites de desejo

 

dá-me a tua mão

e vamos ver os barcos

e vamos aos Coqueiros

e vamos...

 

foge de mim

e olha-me como se eu fosse uma amoreira

sempre adormecida nas palavras da fogueira do sono

a contar os barcos mergulhados em sexos murchos

 

Oiço do espelho que me come

o cansaço das tardes de Primavera

 

(um velho com um chapéu de palha

sentado sobre a pedra do esquecimento)

 

os melros anunciam-me que ao longe

um espelho invisível

esperam-me

quatro cadeiras

um velho com um chapéu de palha

a contar os barcos mergulhados em sexos murchos

e palavras

palavras com lágrimas

barcos com sexos murchos

nos umbrais da agonia

esqueletos de rissóis

eu

tu

barcos

a Primavera

os melros

a esplanada

quatro cadeiras

três livros

um sumo de laranja

os barcos mergulhados em sexos murchos

e palavras

ai as palavras

antes de tocarem no dia

morre a cidade

morre o rio

quatro cadeiras

um rio

um velho

o chapéu de palha sentado na perda do esquecimento

barcos

os barcos

nos sexos murchos da cidade.

a construtora de madrugadas

 

sou construtora de madrugadas

rainha das sombras

e dos jardins invisíveis

sou o poema louco

no teu corpo lânguido

das sombras imaginárias

 

sou o amor

e todas as palavras coloridas

dos livros onde poisas

as tuas mãos sonâmbulas e apetecidas

 

sou os teus olhos em pôr-do-sol

o teu peito em pedacinhos de areia

húmida

todas elas as palavras

 

sou construtora de madrugadas

projectista de sonhos

de cansaços

abraços

nas alvoradas

A cidade proibida

 

Caminho sobre a cidade em construção

deito-me na ponte do desejo

e acaricio os prédios em ruínas

as ruas de sílaba em sílaba

debaixo das árvores de papel

a cidade

a caminho do infinito

na desordem de acordar

 

e frio

nas sílabas de sílabas das sílabas

da tua boca engasgada nas palavras proibidas

e frio do silêncio das flores de cetim

em busca de um abraço

à procura de um beijo

 

a caminhar

sobre o vento em construção

a cidade

a cidade invisível à janela da tua boca

e frio

nas sílabas

em flores de cetim

a cidade proibida