quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Dias cinzentos

 

Os dias são cinzentos

E não risonhos

Os dias são alimentos

Que matam os sonhos

 

Se não fosse a poesia

Se não fosse a noite escura

Eu não tinha dia

Eu não tinha literatura

 

Os dias são cinzentos

Os dias são tristonhos e sem sabor

Os dias são ventos

 

São palavras do luar

Os dias são dor

Na dor de amar.

 

 

03/01/2024

Sonho

 

Sonho-te

Sonhando-te brincar no teu sonhar

Como uma criança mimada

Que brinca no baloiço da paixão,

 

Sonho-te

Sonhando-te com os teus olhos de mar

Enquanto se ergue a madrugada

Na minha mão,

 

Sonho-te

Sonhando-te com os teus doces lábios de mel

Que abraçam os meus lábios

E se escondem neste pedacinho de papel.

 

 

03/01/2024

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Enquanto houver

 

Enquanto houver noite

Enquanto houver dia

Enquanto houver sol

Lua

Ou poesia

Enquanto houver madrugada

Pedra-pomes

Enquanto houver mar

E rios sem nome

Enquanto houver manhã

Enquanto houver uma fotografia

Que te recorde

A noite de um cadáver

 

Enquanto houver silêncio

Enquanto houver a página de um livro para ler

Enquanto houver uma tela

Para rabiscar…

Enquanto houver o chão

Para escrever

 

Enquanto houver solidão

Enquanto houver sofrer

Enquanto houver avião

Foguetão

Marte

Lua

Mercúrio

Azoto

Enquanto houver dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio

Enquanto houver fartura

Génio

Enquanto houver uma molécula sobre a mesa

 

Enquanto houver um prato de sopa

Enquanto houver um cigarro de enrolar

Enquanto houver migalhas de pão

Enquanto houver um barco no mar

Enquanto houver estrelas no céu

Amêndoas nos teus olhos

Enquanto houver flores

E tripas aos molhos

E vinho

E uísque

E droga

Enquanto houver prostitutas

Enquanto houver magalas

Meninos em calções

Enquanto houver por perto um alfaiate

Um barco rabelo

Enquanto houver frio

Ou um gajo com gelo

 

Enquanto houver papoilas

Enquanto houver chuva

Enquanto houver Saturno

Enquanto houver Neptuno

Retrógrado em aquário

Enquanto houver uma cozinha

Enquanto houver um armário

Um João

Um Pedro

Um Francisco

Enquanto houver um filho

 

Enquanto houver um filho…

Não é preciso haver mais nada.

 

Enquanto houver um relógio de pulso

De parede

De bolso

De sol

Enquanto houver uma bussola de sono

Enquanto houver um par de meias

Enquanto houver um par de cuecas

Enquanto houver um soutien

Enquanto houver um par de calças

Sem número

Enquanto houver a tristeza

A fantasia

E a beleza

Enquanto houver uma mesa

Enquanto houver um par de sapatos

Enquanto houver um par de sandálias…

 

Enquanto houver um par de sandálias

Não precisa o poema de mais nada.

 

Enquanto houver um quadro triste pendurado numa triste parede

Enquanto houver uma janela para o mar

Enquanto houver a segunda derivada

Enquanto houver a mediatriz dos teus seios

Enquanto houver a hipotenusa da tua vagina

Enquanto houver juízo

Não querendo o poeta ter juízo

 

Enquanto houver um poeta

Louco que seja

Que seja louco e belo e de corpo adocicado

Enquanto houver quem o lamba

Quem o saboreei

Antes do nascer do sol

Enquanto houver uma lanterna

Um cofre nocturno

Enquanto houver um policia

Um trapezista

Enquanto houver neste circo um malabarista

E um velhinho trompetista

 

Enquanto houver um velhinho trompetista

Precisa o poeta de tudo.

 

Enquanto houver uma cigarra

Enquanto houver uma formiga

Formiguinha

Mosca

Mosquinha

Abelha nos teus lábios

Enquanto houver beijos

Enquanto houver desejo

Enquanto houver plantas

Enquanto houver uma grafonola a flutuar no Tejo

Enquanto houver Tejo

Enquanto houver triciclos

Carrinhos de linhas

E agulhas

Enquanto houver mãe

 

Se morre a mãe

De tudo precisa o poeta.

 

Enquanto houver bombeiros voluntários

Incêndios nos teus olhos

Enquanto houver um jardim

Com banquinhos em madeira

Com cinzeiros e cigarreiras

Enquanto houver o sábado

Enquanto houver uma quarta-feira

Que seja diferente

Da anterior terça-feira

Enquanto houver um sacerdote

Um bispo

E um barbudo

Enquanto houver um sino a tocar

E um outro a chorar

Enquanto houver trinta meses de prisão

Por escrever

Amo-te

Enquanto houver o cinzento

O encarnado

O triste

Soldado

Enquanto houver uma granada de mão

Um sopro no coração

Enquanto houver uma gambiarra

Capim

E mabecos

Enquanto houver uma sanzala de atum

Um pedaço de pão com queijo

Enquanto houver cabras

Vacas

Leite

Enquanto houver geada

Manhã e madrugada

Enquanto houver um sótão

Uma beringela

Meio pepino

Enquanto houver uma couve

Enquanto houver um elefante na sala

E outro na casa de banho

Enquanto houver um par de testículos pendurados no estendal

Enquanto houver Viagra

Morfina

Enquanto houver heroína

Enquanto houver lágrimas

De crocodilo

Sábado à noite

 

Enquanto houver uma espingarda

PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM PUM

Enquanto houver uma criança a pedinchar pão

Enquanto houver pão

Enquanto houver um clitóris que me compreenda

Enquanto houver uma mão que afague o meu cabelo

Enquanto houver obrigado

Por favor

Domingo estamos encerrados

Descanso semanal

Enquanto houver nenúfares

Enquanto houver um pirilampo

Uvas moscatel

Enquanto houver

Chuva

 

Que chova quando quiser

Enquanto houver

Enquanto houver no teu cabelo um pedacinho de insónia

Enquanto houver uma nuvem de chocolate

Enquanto houver um pénis à janela do Paraíso

Enquanto houver Paraíso

 

Sem Paraíso está o poeta fodido…

E precisa de tudo.

 

Enquanto houver poema

Enquanto houver poesia

Palavras entremeadas com massa

Rojões à moda do poeta louco

Enquanto houver um porco

Uma galinha que ponha ovos de oiro

Enquanto houver montanhas

Cumes

Enquanto houver telhados

Pássaros

Badamecos diplomados

Enquanto houver diplomados

Rissóis de camarão

 

Enquanto houver tostão

Enquanto houver marmelada com queijo

Goiabada com amendoins

Enquanto houver um percevejo escondido na cama

Enquanto houver cama

Destino

Enquanto houver…

 

De nada mais precisa o poeta.

 

 

 

02/01/2024

O centeio da manhã

 

Beijarei os teus olhos, límpida água da ribeira que transporta o sono para o rio,

Beijarei o teu sono,

Beijarei os teus medos, de teres medo, beijarei as tuas mãos, lua mingua das noites proibidas, pedaço de sargaço nas mãos do homem,

Beijarei o teu cabelo,

Os teus lábios de fina ardósia,

Beijarei a tua sombra, quando se ergue a noite dentro deste cubo invisível,

 

Beijarei o sol, beijarei Deus, beijarei o teu corpo, docemente, como se fosse um pedacinho de chocolate…

Perdido nos meus dedos.

 

Beijarei a tua face, oculta, beijarei as primeiras lágrimas que a manhã lança para o mar, beijarei a montanha,

Quando o peso da montanha é desprezável,

Comparado com o peso da noite,

 

Beijarei simplesmente a tua testa, afagarei as tuas asas, pássaro das caravelas em flor,

Erguendo-se deste rio,

Levantando-se deste chão calcinado pelo cacimbo,

Beijarei os teus dedos, milésima canção de adormecer…

Quando da janela oiço a tua voz misturada com o centeio da manhã,

Beijarei o teu silêncio, beijarei;

Enquanto houver sol,

Enquanto houver dia.

 

 

 

02/01/2024

O poeta em Paris

 

Levita na gravidade de sentir

O poeta dependurado quando um fio de silêncio corta a cabeça do sono,

O sono faz bem, a insónia certamente fará melhor,

Comparado com o dia,

Que é tédio, que é drageia para o apetite…

E quase nada come, o poeta,

Quase,

Porque o poeta em Paris,

Foi feliz,

Quando nos seus olhos se alicerçou o sorriso do Louvre.

 

Ai o Louvre.

Ai a Torre Eiffel,

O Arco…

Trouxe livros de lá, caderninhos onde agora escreve palavrinhas, números, coisas de encantar as crianças, contas de merceeiro,

E o poeta foi tão feliz, em Paris,

Tão feliz como o é a cidade Luz…

Paris à noite, enquanto um autocarro descapotável se escondia em cada rua de desejo…

De pertencer à cidade.

 

Em cada esquina, um artista, um poeta, um músico…

Este poeta,

Em cada esquina uma palavra proibida, uma palavra disparada contra o Sena, e o cheiro do Sena, meu Deus…

E os barcos, meu Deus; e as pontes e os alimentos da alma.

E a lua estava tão linda.

 

Certamente irá um dia, o poeta, novamente a Paris…

Certamente,

Um dia,

Dia.

 

 

02/01/2024


Compreensão

 

Talvez Cesariny me compreenda

Talvez

Talvez Proust me compreenda

Ou Goethe

Talvez

Talvez o nada seja tudo

E o tudo

Nunca seja nada.

 

Talvez estes versos

Me compreendam

Talvez

Talvez o Senhor Álvaro de Campos

Me compreenda

Talvez

Talvez

Que seja

Talvez o revólver do Senhor Mário de Sá-Carneiro

Me compreenda

Talvez

Alguma vez...

 

02/01/2024

Paixão de viver

 

O dia está triste

Eu

Estou triste

Porque

O dia acordou triste

 

Porque são tristes

Os dias?

 

Porquê tanta alegria

Quando um poema

Morre

Na

Minha

Mão?

 

E finco tão feliz

Olhar a morte do poema…

 

O dia é triste

Eu quase sempre

Tal como o dia

Sou triste

E só fico contente

 

Quando me morre um poema,

 

E eu venere-o como se fosse a paixão de viver,

Que não tenho,

Que nem sei se existe.

 

02/01/2024