segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Objecto quase

 

A tua boca incendeia a minha boca, na tua boca teus lábios a fimbria manhã do mar, a tua boca aprisionada aos meus lábios, e o poeta começa a dessecar o teu cabelo,

 

Montanha do Adeus quando Deus começa a fumar o último cigarro da madrugada.

Filho, ouve-me

Filho, vem a mim

E dar-te-ei as plumas da noite.

 

A tua boca mendiga, mendiga o beijo, mendiga que o diga, que nunca o dirá

A tua boca amarga quando inventas a tempestade na esquina do pedestre homem de prata.

 

A tua boca incendeia, a tua boca, na minha boca, quando transportas nos olhos a magreza do silêncio,

Pouco em mim se despede,

Pouco ou quase muito pouco,

Se cansa de mim.

 

Da tua boca o nascer do sol, na tua boca o acordar da Primavera com uma pitada de chocolate, na tua boca o doce comboio da saudade, infame riso, quando a tua boca desenha sorrisos na clandestina metáfora do poema,

 

Na tua boca, eu me deito, eu me morro, de pensar na tua boca…

 

Na tua boca o calor desta fogueira.

 

A tua boca, na minha boca

És tu, filho?

A tua boca que dispara papelinhos cor-de-rosa, a tua boca quando percebo que a tua boca permanecerá indivisível,

Como poderia eu dividir a tua boca,

Em duas,

Em três,

Pedacinhos de alegria.

 

A tua boca sabe a uísque.

A tua boca na minha boca, mendigo que sou, aprendiz de feiticeiro, astrólogo, e mercúrio sempre retrógrado, em aquário

Uma estrela morreu.

 

A tua boca, minha querida, silêncio de espuma, manjar artesanal dos finais de tarde junto ao mar,

Tua minha boca a tua boca incendeia a minha boca

 

Amanhã terei a tua boca, segundo previsões do FMI, amanhã…

Direi, dirão que a tua boca é um inferno de amar,

Quando a noite te pertence.

E quando amar é uma noite.

 

E quando ser é não ser. Amanhã dirão, que o Inverno é Verão, e a tua boca pertence-me e nunca mais direi que a tua boca sabe a uísque…

 

Caí sobre ti.

A minha boca.

 

A tua boca na minha boca, incêndio que se apodera dos meus braços, o meu corpo arde, trasveste-se de sombra e de nojo,

 

E morre na tua boca.

 

Sabes, meu amor, na tua boca há palavras proibidas, palavras guerreiras, palavras garridas e de muitas cores,

E de muitos sabores.

 

Quero a tua boca, meu amor!

 

Quero o sabor da tua boca!

 

Meu amor.

 

Na tua boca sei que existem margaridas, papagaios em papel, mangas, sombra de mangueira, pedacinhos de capim, deserto no chão

Existe também, na tua boca,

A sibala,

Existe, também, meu amor

O relógio de pulso que me expulsa quando acorda o dia,

 

Quase noite, este objecto quase,

Quase tudo

Quase nada

Quase que quase

Absolutamente quase…

 

A tua boca.

Emagrece o dia, engorda a noite, despede-se de mim, a tua boca, fico só, fico triste, fico Quase…

Um objecto quase.

A tua boca é arte. A tua boca é poesia, mendicidade, promessas do dia e outras coisas vindas da cidade, a tu boca arde

Incendeia.

Mata a minha boca.

 

A tua boca é isto

É aquilo

É terça-feira

Quase objecto

Quase quarta-feira…

na tua boca.

 

A tua boca despe-se, veste-se e dispara na minha boca, senta-se, alisa o cabelo venturado, ergue-se e beija a minha boca,

Amanhã, filho

Amanhã…

A tua boca me pertencerá.

 

A tua mingua boca, na minha boca, quando todas as palavras do poema incendeiam, também elas sabem incendiar, a tua boca,

Falange,

Menino traquina a brincar com barcos,

E trapos,

E farrapos,

Com serpentes,

Na tua boca o medo

Da tua minha boca,

Sentimento que dorme em mim, quando se levanta o horizonte e logo mais é noite

 

E depois,

Logo mais é dia.

Quando na tua boca é sábado

Quando na tua boca é domingo

Quando na tua boca é poesia.

 

Que diria

A tua boca

Da minha boca!

 

Sendo a tua boca um esconderijo de mentiras.

 

 

01/01/2024

Brancura

 

Brancura que o corvo alimenta durante a noite, uma outra noite, seus filhos e seus netos, brancura maresia quando já é manhã, quando um pássaro vem de longe e transporta no bico

O penúltimo luar.

 

Brancura teu corpo, tão branco como a espuma do mar, brancura tatuada na tua língua, na tua mão junto ao beijo.

Brancura o silêncio e a despedida e a aurora que nunca mais vai acordar, brancura de ter, brancura de amar. Brancura mingua madrugada, com cinturão encarnado e na mão uma espada, uma sandália, brancura esse teu corpo, brancura tatuada nas páginas de um livro.

 

Brancura desanimada, triste, doente, talvez ausente, brancura fogo na boca do artista, brancura a caneta nos dedos do poeta, que escreve na brancura do teu corpo, que desenha na brancura do teu corpo…

O astrolábio do desejo.

 

Brancura quando este relógio se cansa de me acompanhar, e na brancura nocturna do teu clitóris, oiço a quinta sinfonia de Beethoven, tão linda

A brancura do ausentado menino.

Brancura de amar, brancura de desejar, o mar, o luar, a lua, o sol.

Brancura de ter uma mão disponível para pedinchar,

Um bolso onde guardar as amêndoas dos teus olhos, brancura de ser, pássaro fêmea revoltada na brancura do teu corpo,

A brancura tatuada.

 

Brancura que o corvo alimenta,

Altamente tóxico, quando há na brancura de amar

Um pedaço de aço,

Uma porção de chapa canelada,

Brancura este corvo, que alimenta a noite, que traz as cinco pedras da brancura…

 

Que pega nesta enxada

De brancura purpura

Levante até ao cume da montanha,

Brancura esta que o teu corpo apanha,

Que o corvo alimenta

Quando a noite tem fome.

 

 

01/01/2024

Pai nosso

 

Pai nosso

Que viveis dentro desse buraco negro

Sentado numa pedra

Que nem tempo tens para um cigarrinho

Ou falar com a gente.

 

Pai nosso

Que viveis nessa escuridão de semimorte

Nesse complexo ultraje da vivência

 

Pai nosso guerreiro

Que viveis dentro desse buraco negro

Sem janelas

Sem o cheiro do mar.

 

Sem os barcos.

Pai nosso

Ergue as mãos ao teu filho

Que de puta em puta se fez homem

Pai nosso dos buracos negros e dos céus e das raízes invisíveis

Dizei-me;

Porquê.

 

 

 

01/01/2024

Manhã sardenta

 

Se tu me amasses

Como eu te escrevo amar

Se tu me beijasses

Como eu te desenho beijar

Se tu dormisses

Como eu não durmo

Sonhando sonhar

Com os teus olhos de mar.

 

Se tu me escrevesses

Como eu te escrevo escrevendo sem te enviar

Se tu fosses a manhã sardenta

Com nuvens de brincar

Se tu me amasses

Como amam as flores

Como fazem as pedras

Depois do jantar,

 

Se tu fosses a lágrima prometida

Que atravessa o dia

Que tem força de bala

Se tu me trouxesses o capim da sanzala

Se tu fosses uma pequena lâmina que incendeia a noite…

Quando a noite já é um incêndio,

 

Se tu fosses a aurora

Mulher erguida

Pronta na hora,

Se tu fosses uma margarida

Ou o som do silêncio

Ou uma dúzia de pequenos nadas...

Se tu fosses este verso

 

Me amasses como escrevo amar

Me beijasses com desenho beijar…

Se tu…

Eu era a segunda lágrima da manhã.

 

 

01/01/2024

Mulher de vidro

 

Sem asas um pássaro

Uma mulher de vidro

Sem cabeça

Um homem embriagado

E com frio

E que apareça

No rio

A cabeça da mulher de vidro.

 

Um pássaro apaixonado

Um coração de areia

Fino e escuro

O homem procura a cabeça

Com alguma figura

Que no rio apareça

E não se esqueça

De a procurar com ternura.

 

Um rio com fome

Uma mulher de vidro que perdeu a cabeça

O poeta sem nome

O poeta é um homem

É o homem que procura a cabeça

Da mulher de vidro.

 

Sem voz um pássaro

Sem mãos um poeta

Que deixa de escrever

Que deixa a vida sofrer

Uma mulher sem cabeça

Uma mulher de vidro

Exposta sobre a mesa.

 

Tenazmente só

Só um pássaro sem asas

Só o poeta sem mãos

Uma mulher sem cabeça

Também só

De vidro

De aço

Tenazmente só

Só sem cabeça

Só sem mãos

Só sem asas.

 

Perdeu a cabeça

Perdeu as mãos

Sem asas

Um pássaro

Sem mãos o poeta

Sem cabeça

A mulher de vidro.

 

 

01/01/2024

Fogueira

 

Arde a fogueira, arde e não sabe a razão de arder.

Às vezes, tenho ciúmes desta fogueira,

Queria arder como ela,

Queria.

Arde a fogueira e olho-a e pergunto-lhe e digo-lhe e peço-lhe…

Que posso eu pedir a uma fogueira que arde,

Que aos poucos desaparece neste silêncio de fingir,

Na mentira de arder.

Esta fogueira

Na maré princesa de amar.

 

Arde esta fogueira. Os meus olhos ardem, com ela.

E não me canso de pedir a esta fogueira

As maresias e as hortências da madrugada,

Quando tudo arde,

Quando tudo é nada,

Quando o nada se transforma em cinza,

Arde, arde meu amor de fogueira

Nesta sombra de viver,

Ardendo e ser consumido por um verme,

Castanho, pigmentado de tinta florescente,

À espera de me ver morrer.

 

Arde menina arde fogueirinha.

Arde esta fogueira e invejo-a e prometo arder também

Assim que a noite desça à tua mão.

 

Arde esta fogueira e arderia eu também, se me deixassem…

E eu não me canso de lhe pedir

Um pouco do seu lume,

Que eu sinto ciúme desta fogueira…

Que eu sinto azedume desta vida.

Ela arde

Eu vou arder

E quem sabe

Nos teus braços.

 

 

01/01/2024

Liberdade

 

Não espero mais por mim

Assim

Aqui sobre as páginas de um livro

Aqui sentindo o caos

Aqui

Sem ti.

De mim

Assim.

 

Não espero mais por mim

Não espero nada de mim

Assim

Contiguo aos espelhos da manhã.

 

Não espero mais por mim

Na tristeza de avassalar na tristeza de cantar

A canção da despedida.

Não espero mais por mim

Sentida

Por aqui

Assim

Acreditando que o dia

Um dia

Me esganará

E me dará a liberdade.

 

 

01/01/2024