segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Manhã sardenta

 

Se tu me amasses

Como eu te escrevo amar

Se tu me beijasses

Como eu te desenho beijar

Se tu dormisses

Como eu não durmo

Sonhando sonhar

Com os teus olhos de mar.

 

Se tu me escrevesses

Como eu te escrevo escrevendo sem te enviar

Se tu fosses a manhã sardenta

Com nuvens de brincar

Se tu me amasses

Como amam as flores

Como fazem as pedras

Depois do jantar,

 

Se tu fosses a lágrima prometida

Que atravessa o dia

Que tem força de bala

Se tu me trouxesses o capim da sanzala

Se tu fosses uma pequena lâmina que incendeia a noite…

Quando a noite já é um incêndio,

 

Se tu fosses a aurora

Mulher erguida

Pronta na hora,

Se tu fosses uma margarida

Ou o som do silêncio

Ou uma dúzia de pequenos nadas...

Se tu fosses este verso

 

Me amasses como escrevo amar

Me beijasses com desenho beijar…

Se tu…

Eu era a segunda lágrima da manhã.

 

 

01/01/2024

Mulher de vidro

 

Sem asas um pássaro

Uma mulher de vidro

Sem cabeça

Um homem embriagado

E com frio

E que apareça

No rio

A cabeça da mulher de vidro.

 

Um pássaro apaixonado

Um coração de areia

Fino e escuro

O homem procura a cabeça

Com alguma figura

Que no rio apareça

E não se esqueça

De a procurar com ternura.

 

Um rio com fome

Uma mulher de vidro que perdeu a cabeça

O poeta sem nome

O poeta é um homem

É o homem que procura a cabeça

Da mulher de vidro.

 

Sem voz um pássaro

Sem mãos um poeta

Que deixa de escrever

Que deixa a vida sofrer

Uma mulher sem cabeça

Uma mulher de vidro

Exposta sobre a mesa.

 

Tenazmente só

Só um pássaro sem asas

Só o poeta sem mãos

Uma mulher sem cabeça

Também só

De vidro

De aço

Tenazmente só

Só sem cabeça

Só sem mãos

Só sem asas.

 

Perdeu a cabeça

Perdeu as mãos

Sem asas

Um pássaro

Sem mãos o poeta

Sem cabeça

A mulher de vidro.

 

 

01/01/2024

Fogueira

 

Arde a fogueira, arde e não sabe a razão de arder.

Às vezes, tenho ciúmes desta fogueira,

Queria arder como ela,

Queria.

Arde a fogueira e olho-a e pergunto-lhe e digo-lhe e peço-lhe…

Que posso eu pedir a uma fogueira que arde,

Que aos poucos desaparece neste silêncio de fingir,

Na mentira de arder.

Esta fogueira

Na maré princesa de amar.

 

Arde esta fogueira. Os meus olhos ardem, com ela.

E não me canso de pedir a esta fogueira

As maresias e as hortências da madrugada,

Quando tudo arde,

Quando tudo é nada,

Quando o nada se transforma em cinza,

Arde, arde meu amor de fogueira

Nesta sombra de viver,

Ardendo e ser consumido por um verme,

Castanho, pigmentado de tinta florescente,

À espera de me ver morrer.

 

Arde menina arde fogueirinha.

Arde esta fogueira e invejo-a e prometo arder também

Assim que a noite desça à tua mão.

 

Arde esta fogueira e arderia eu também, se me deixassem…

E eu não me canso de lhe pedir

Um pouco do seu lume,

Que eu sinto ciúme desta fogueira…

Que eu sinto azedume desta vida.

Ela arde

Eu vou arder

E quem sabe

Nos teus braços.

 

 

01/01/2024

Liberdade

 

Não espero mais por mim

Assim

Aqui sobre as páginas de um livro

Aqui sentindo o caos

Aqui

Sem ti.

De mim

Assim.

 

Não espero mais por mim

Não espero nada de mim

Assim

Contiguo aos espelhos da manhã.

 

Não espero mais por mim

Na tristeza de avassalar na tristeza de cantar

A canção da despedida.

Não espero mais por mim

Sentida

Por aqui

Assim

Acreditando que o dia

Um dia

Me esganará

E me dará a liberdade.

 

 

01/01/2024

domingo, 31 de dezembro de 2023

Que seja

 

Procuro na tua boca as primeiras lágrimas da manhã, e que seja

A manhã de um novo amanhã.

Que seja o último poema. Que seja.

E que sejam as minhas últimas palavras, escritas

Ditas.

E que sejam.

Procuro os teus lábios neste incêndio de madrugadas, procuro os teus olhos, neste inferno de viver,

Vivendo que seja,

Que seja amanhã o dia sem noite,

Que seja a embriaguez

Que seja

Dentro desta aflição.

 

Que seja este copo de uísque o meu último veneno

Que seja

Que morra esta noite.

Que seja a solidão o meu último abraço,

Que seja.

Que seja a limonada

A minha última refeição,

Que seja.

 

Que seja o grito,

Que seja.

Que seja a tua boca uma sílaba,

Que seja,

Bem que seja,

Antes que o meu corpo seja merda, palha, ramos de árvore.

 

Que seja o vómito a tua alegria,

Que seja,

Que nada seja,

Quando tudo quer ser.

Que seja noite, sempre noite, mais uma noite, assim…

Que seja.

Que sejam os chifres do carneiro,

Que sejam,

Quando o poema morre de aflição, morre de tesão, que seja a morte o meu último desejo,

De te ver,

E que seja,

Antes de partir a madrugada.

 

Que eu seja.

Que seja Inverno nestes cubos de gelo,

E que seja,

Amanhecer sem razão,

Grito, que seja espasmo, que seja razão sem vida numa outra vida, que seja

Aldrabão, que seja.

Que seja Deus, que seja Cristo, que seja.

Que seja este parvalhão com a cruz às costas, que seja,

Enquanto eu,

Prefiro ser,

Levar-te nos braços e beijar-te e amar-te…

Que seja.

 

Que seja a tua boca silêncio, a voz, a rasura rasurada nos teus lábios.

Que seja.

Que seja ontem, que seja.

E hoje, também, que seja.

Que seja esta merda dentro desta merda…. E do outro que seja.

Que seja amanhã, que seja.

 

Procuro na tua boca as primeiras lágrimas da manhã, e que seja

A manhã de um novo amanhã.

Que seja o último poema. Que seja.

 

Que seja.

 

 

31/12/2023

Diabo

 

Que se erga o diabo do teu corpo

Que me abrace

Do teu corpo o diabo

Que faça amor comigo

O diabo

Do teu corpo

Que se erga esta sanzala de pão

Pois então

Ao largo de Peniche

Que se erga

Que se erga o sábado e o domingo

Que se deite a sexta-feira

E que se erga da tua mão

A montanha mais pesada da lua

E o resto que se lixe.

 

Que se erga o teu corpo

Nu só e nas mãos do diabo

Que se erga a palavra

Contra a palavra

Que se escreva

E que se erga

A madrugada.

 

Que se erga

Quando chega

O fino clitóris dos teus olhos

Que se erga o mar dos teus olhos

E o mel dos teus lábios

Que se erga a paixão

Que se erga o final de tarde

No finíssimo tubo de experiencias dominicais

Que se erga a morte

Que se deitem as notícias nos jornais

Que se erga a vontade

Na funda pensão de erguer

Que se erga o foder

Que se erga o haxixe

Quando a mão está a beber

E a tremer.

 

Que se erga a primeira lágrima da manhã do teu lindo cabelo

Que se erga a mão que alisa o teu lindo cabelo

Em cabelo que se erga

Que se erga tudo aquilo que não consegue erguer-se

Que se erga a noite contra a tua vagina

Que se ergam os teus seios

Contra o meu peito

Que se erga tudo isto

E tudo aquilo

Que se erga Álvaro de Campos

E Cesariny

Que se erga o AL Berto

Tudo se erga

Até aquilo que está perto.

 

Que se ergam as donzelas

E as putas donzelas

Que se erga Cais do Sodré

Que se erga o António e o Tomé

Que se erga o Tejo

E os magalas do Tejo

Que se erga a tua voz

Na tua voz de galinha

Choca

Menina

Que se erga Nossa Senhora

Seu filho e sua mãe

Que se erga a cultura

A palavra

E o sono também.

 

Que se ergam as mandibulas do criador

Meu criado

Meu senhor

Sempre ao dispor

Que se erga Deus

E que Deus tenha juízo

Que se erga quem está sentado

E quem procura o diabo

Que se ergam do teu corpo todas as ervas daninhas

Que se erga o feitiço

Da Pirâmide do Egipto

Que se erga

 

João então coração pão pistola de sabão

Que se erga Mário de Sá-Carneiro

Que se erga pum pum pum

E que se ergam também seus miolos.

 

Que se erga Apolo

Anjo quebrado

Civilizado

Que se erga o tio e a tia

Que se erga o pequenino menino sobrinho

Coitadinho

Que se erga

Que se erga a masturbação

Que se erga a flauta-mágica

Que se erga a meia-noite

E as drageias do meio-dia.

 

Que se erga o poema e a poesia

Que se erga o meu cigarro contra a tua teimosia

Que se erga o silêncio do teu olhar

Contra a insónia

Do meu olhar

 

Que se erga a noite

Que se ergam os sonhos

Que se ergam os bombos da fanfarra

Que se erga Alberto

Que se erga

E abra

As coxas do Roberto.

 

Que se erga Pedro e São Paulo

Que se erga o esterco

E o mexilhão

Que se erga a partitura

Que se erga a minha mão

Contra a tua mão

 

Que se ergam os misos teres ai

Ui

Que se erga o teu nome

Na fome

Que se erga o levante

E as flores de levar

Que se ergam os pinheiros

As pinhas

E as caixas de fósforos

Que se ergam

Quando o quiserem

As cinzas do meu corpo.

 

 

 

31/12/2023

Poema cabelo belo

 

Poema cabelo amanhecer

Ergue-te estátua deste jardim sem nome

Quando o pão é fome

Quando a fome é de prever.

 

Poema cabelo vento

Barco renegado

Pensamento

Gado.

 

Coração dilatado

Poema cabelo flor

Fuma o drogado

E fuma a dor.

 

Poema cabelo fogueira

Montanha na mão montanha no luar

Poema cabelo ribeira

Quando ao longe está o mar.

 

Quando ao perto

Poema cabelo clitóris da madrugada

Quando o quase certo

Parece o quase anda.

 

 

31/12/2023