domingo, 31 de dezembro de 2023

Ainda bem

 

Ainda bem

Que ontem parti a cabeça

Ainda bem

Ainda bem que o sol é redondo

E a lua também

Ainda bem

Que a mão é de aço

E o abraço

Também

Ainda bem

 

Ainda bem

Que a noite é escura

Que é às vezes é secura

Ainda bem

 

Ainda bem

Que ontem parti a cabeça

E estava tudo bem

Ainda bem

 

Ainda bem

Que muito bem

O cabelo é o centeio

E o mar

Também

Ainda bem.

 

 

31/12/2023

Primeiro livro

 

Lembro-me de ti

Claro que nunca vou esquecer as tuas mãos no meu rosto

Lembro-me de ti e dos papagaios em papel que fazias

E brincavas

E brincavas

E dizias

Que nunca mis de ti me lembraria

 

Se até me lembro do primeiro livro que li

Como podia esquecer o teu rosto

Ao esquecer-me de ti

Lembro-me de ti

Lembro

Muito

Das mangas em quede livre

Como um foguetão

Em direcção às tuas mãos

 

Lembro de ti

Apavorada

Quando o mar me puxava

Invisivelmente para as suas mãos cinzentas

Lembro-me

Muito

Mãe

Lembro-me de ti

E lembro-me do teu cabelo em noite de tempestade.

 

 

31/12/2023

Vou amar-te

 

Vou amar-te

Até que termine a noite

Até que o som dos teus lábios

Se transforme em fogo

 

Vou amar-te

Até que a minha mão se canse de escrever

Até que me faltem as palavras

Quando não tiver mais palavras

Eu vou ama-te

Até que seja noite

Até que a lua se esconda nos teus olhos…

 

Vou amar-te

Até que o meu sorriso seja o dia

Que nasce neste poema

Até que a vaidade seja a simples morte

Do poeta que ama

Loucamente

A noite

Até que seja noite

Vou amar-te

 

Até que seja vento

Até que seja pássaro

Vou amar-te

Loucamente

Até que seja noite

Até que seja gente.

 

 

31/12/2023

sábado, 30 de dezembro de 2023

Abelha

 

Devo sofrer de disfunção

Não do foro eréctil

Mas sim do movimento solidário em silêncio psicológico

Não sei se já sou tio

Mesmo que o fosse interinamente

Ficaria muto orgulhoso contente a gente

Quase a ser avô

Quase a ser nada quando comparado com tudo

É muito pouco.

 

Falando em interinamente

Também o fui

Como pai

Mas fui devolvido à procedência

A maré é de cocó

O triângulo equilátero que me assola

Não assombra

Mas assopra

Sobre o mar qualquer coisa de se comer.

 

Como-te saboreio-te acaricio-te olhar

Não te frito

Porque quando estou aflito

De te olhar

De te acariciar

Não consigo te fritar

Como-te delicadamente

E com o dedo e com a língua

Retiro de ti o açúcar e a canela

E não fosses tu uma “frita de Natal”

Eu diria que eras a nave espacial mais bela da galáxia.

 

Devo sofrer de qualquer coisa real

Isenta de impostos

Qualquer coisa que satisfaça o conselho indisciplinado da ausência…

Dizem que coifou os parafusos

E se coifou ou não coifou…

Só ele é que o sabe.

 

Devo estar louco

Devo estar quente

Sente

Um pouco

Enquanto nada parece cinzento

E a primeira lágrima

É uma albarda de sono.

 

Pinto-me de escuro. Afoito-me nestas camisas pálidas e sem nome

Provando memórias

Escolhendo por entre a fome

Os chifres esqueléticos das cabras

Quando procuram os gémeos das fotografias

E um pedaço de silêncio prateado

Desventra o seu corpo de miúça catanada.

 

Dançam as meninas de além.

Dormem os meninos de cá.

Escrevem os poetas de cima.

Suicidam-se os poetas do andar de baixo.

E mesmo assim

E no entanto

Devo sofrer de disfunção

Não do foro eréctil

Mas sim do movimento solidário em silêncio psicológico

Não sei se já sou tio

Mesmo que o fosse interinamente

Ficaria muto orgulhoso contente a gente

Quase a ser avô

 

De um poema lindo.

 

 

30/12/2023

Jantar

 

Preciso de um prato

Para não comer no chão

Preciso de uma mão

Para segurar o talher

Preciso de uma mulher

Para me beijar

Para me abraçar

Preciso de um prato

Para não comer no chão

Preciso de uma mão

Para segurar o pão

Preciso de um prato

Para não comer no chão

Preciso de uma mão

Para segurar no prato

Preciso de um chão

Para pegar no meu coração

 

 

30/12/2023

Cubata

 

Cubata

Chata

Chapa

Lata

Cubata

 

Cubata quando emagrece

Cubata quando esquece

O fogo que aquece

Cubata ao que parece

 

O minguar

A gata a gritar

O capim a chorar

Ao longe a Mutamba a abarrotar

 

A cubata a arder

Ela a foder

Foder as cinzas sem o querer

Querendo muito o foder

 

Cubata

Malata

Acta

Chapa

Chata e lata

 

Cubata oiriceira

Cubata à sexta-feira

Cubata junto à feira

Cubata merendeira

Cubata moliceira

 

Cubata foguear

Cubata ou mar

Mar cubata chanfrar

Cornear

A comida do alguidar.

 

 

30/12/2023

Cutty Sark

 

Bebo o teu corpo

Bebo o teu corpo enquanto tenho tempo

Tempo para o beber

E tempo para me sentar e o beber.

 

Bebo o teu corpo

A noite é nossa

Os teus seios não se perdem nas minhas mãos

Mas as minhas mãos perdem-se nos teus seios

Além de que a noite é nossa

Bebo o teu corpo

Esfinge da razão

Palavra que mergulha na água salgada do silêncio

Parecendo às vezes o infortúnio

De uma outra coisa qualquer

Que a própria coisa ou a vida.

 

Bebo o teu corpo

Sei que a noite me vai trazer o mar dos teus olhos

E o mel dos teus lábios

E sei lá mais o que a noite me vai trazer…

Depois de beber o teu corpo

Enquanto tenho tempo de o beber.

 

 

30/12/2023