quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Baleizão

 Este corpo não me pertence.

Utilizo estas mãos,

Que não são minhas,

E que não pertencem ao corpo que não me pertence.

Estes olhos, não me pertencem,

E, no entanto, uso-os

Como se fossem os meus olhos;

Que não são os deste corpo,

Neste corpo onde habito,

Deste corpo amaldiçoado,

Cansado,

Às vezes tão triste,

Que engana a fome com o silêncio.

 

Este corpo não me pertence.

Este corpo emprestado numa noite de neblina,

Reconheço que fui enganado,

Deram-me este corpo a troco de uns míseros poemas…

E como se vê, enganaram-me;

Os poemas eram lindos,

Este corpo…

Este corpo não me pertence,

Não tenho corpo,

E tenho um coração que não é o meu,

Que está dentro deste corpo que não me pertence,

E que às vezes chora, e que às vezes, amua…

 

Este corpo não é o meu.

Não, nunca poderá ser o meu.

Este corpo não tem peso, o meu corpo, pesava saudade,

Este corpo não me pertence,

Não é o meu…

Este corpo é ausência,

Este corpo é vidro disfarçado de xisto,

Esconde-se na montanha,

Olha de soslaio o rio…

E grita,

Grita…

Mas ninguém o apanha.

 

Este corpo não me pertence, este corpo não pode ser o meu,

Este corpo chora, o meu corpo, nunca tinha chorado,

O meu outro corpo, nunca tinha amado,

E, no entanto, deram-me este misero corpo,

Flácido,

Às vezes parece uma bola de papel,

Outras vezes, nem uma coisa nem a outra…

Quando o rio se cansa deste corpo,

E do mar regressam outros corpos,

Outras Nações distantes,

Este corpo ausente, este corpo doente,

Este corpo que não é o meu,

Que fuma os cigarros do meu outro corpo…

Quando se vai embora a Primavera.

 

Este corpo apedrejado pelo medo,

Este corpo não pode ser o corpo, o meu corpo,

Com que passeei junto ao Tejo…

 

Este corpo esconde-se, às vezes,

Este corpo não é o meu, o corpo meu que despi e lancei ao mar,

Este corpo amargurado,

Profundamente enganado quanto ao corpo,

Procura dentro da algibeira, o cartão de embarque

Rumo ao Musseque…

Este corpo não me quer,

Este corpo não me obedece,

Eu quero ir para a esquerda,

O meu corpo, que não pode ser o meu corpo,

Vai para a direita.

 

Eu quero descer as escadas,

E este corpo,

Sobe-as em direcção ao Céu.

 

Este corpo não me pertence,

Este corpo disfarçado de nada,

Que escreve nas paredes de outros corpos,

De outras casas,

Com janelas,

Sem janelas,

Com escadas,

Sem escadas,

Este corpo se perde,

Este corpo se engana,

Este corpo… pára;

No semáforo do Baleizão…

 

Este corpo que eu não quero,

Este corpo que não é o meu,

Este corpo que não me pertence,

Que me ignora,

E me sussurra na madrugada;

Coisas de outros corpos.

Coisas.

Apenas coisas, que este corpo dispensa, que este corpo não quer…

Este corpo só,

Este corpo em dó,

E em ré,

Este corpo que não é o meu,

Este corpo que não tem fé,

E acredita, que um dia, vai ter o corpo que é dele.

 

 

16/11/2023

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