Tenho andado a trabalhar
no meu obituário
Diga-se que pouca coisa
há para dizer
Quase nada, para escrever
sobre mim
Que nasci
E morri
E como toda a gente, tive
um jardim
Porque os poetas não
morrem
Porque os poetas têm um
jardim
Morrem de amor
Junto ao rio
Pertinho do mar
Sou proletário
Diplomado,
Operário de escrever
Sou pedreiro nas horas
mortas
E às vezes
Bato, durante a noite, às
portas
Para entregar propaganda
do partido comunista português
E escondo-me quando o sol
está a nascer
Nunca pensei
Mas penso
Que um obituário fosse
tão complicado de construir
Acreditava que seria mias
fácil escrever um poema
Que era mais fácil eu
cair
E levantar-me
Como sempre
Quando caio
Mas não
Não
Este meu obituário
Escrevo
Apago
Fica assim
Fica assado
Nunca nos entendemos com
os nomes
Com as datas
Ele diz que amanhã é
sábado
Eu
Que não
Eu digo que amanhã é
sexta-feira
Dias treze
Quando um gato se lança a
mim
E pimba
Caí
E morri
Por essa razão
Tão nobre
É que o meu corpo anda a trabalhar
num obituário
E a minha cabeça
A escrever poemas
Poemas
Poemas de amor
Escarnio e maldizer
Todas as cantigas
As cantigas de amigo
As cantigas sei lá de quê
E da puta que os pariu
O que me interessa
O que me interessa é
mesmo o meu obituário
Limpinho
Desapegado do chão
Térreo
O veneno da saudade
Quando morre
Quando levanta voo e meses
depois
Cornos no chão
E meses depois
Nada
Ainda dorme
Nesta cidade
Neste réstio de beijo
Esta cidade
E este beijo
São uma merda
Há três meses, três meses,
que procuro cigarros
E não encontro cigarros
para fumar,
Imaginem que eu procurava
O mar
Algo de
Apetecia-me algo
Algo de especial
Sofisticado
Poeticamente
Adornado
Imaginem
Que não encontrava
E eu juro
Eu juro que procuro
Mas não sei o que que
procurar
Eu procuro uma
pedra-pomes
Mas por estes lados
Ainda não existem
E desisto de procurar
Para povoar esta cidade
E este beijo
Eu procuro
Eu não me canso de
procurar
Eu procuro uma sandália
Eu procuro, nem que seja
apenas em contrafacção, os meus calções
Eu procuro nos lábios do
luar
Mas o luar manda-me
passear
Andar
Rua
Eu procuro na algibeira
E nada tenho a declarar
A não ser
O silêncio que guardo
para te dar
E eu
Procuro
Eu juro que eu procuro
E não me canso de
procurar
Mas não sei
O que procurar
Parece o meu obituário
Eu procuro
Procuro o que escrever
nele
O que desenhar
Nele
Adorava que o meu
obituário
Tivesse às vezes
Quando chove
Imagens da parte traseira
das portas das retretes públicas
Tipo
Gosto de ti
Faz-me um filho
Imagina a mulher da tua
vida…
Agora…
Imagina-a a cagar
Não gosto
E detesto
Construir o meu obituário
Sem saber
O nome deste mar
05/12/2023