terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Obituário

 

Tenho andado a trabalhar no meu obituário

Diga-se que pouca coisa há para dizer

Quase nada, para escrever sobre mim

Que nasci

E morri

E como toda a gente, tive um jardim

Porque os poetas não morrem

Porque os poetas têm um jardim

Morrem de amor

Junto ao rio

Pertinho do mar

 

Sou proletário

Diplomado,

Operário de escrever

Sou pedreiro nas horas mortas

E às vezes

Bato, durante a noite, às portas

Para entregar propaganda do partido comunista português

E escondo-me quando o sol está a nascer

 

Nunca pensei

Mas penso

Que um obituário fosse tão complicado de construir

Acreditava que seria mias fácil escrever um poema

Que era mais fácil eu cair

E levantar-me

Como sempre

Quando caio

 

Mas não

Não

Este meu obituário

Escrevo

Apago

Fica assim

Fica assado

Nunca nos entendemos com os nomes

Com as datas

Ele diz que amanhã é sábado

Eu

Que não

Eu digo que amanhã é sexta-feira

Dias treze

Quando um gato se lança a mim

E pimba

Caí

E morri

 

Por essa razão

Tão nobre

É que o meu corpo anda a trabalhar num obituário

E a minha cabeça

A escrever poemas

Poemas

Poemas de amor

 

Escarnio e maldizer

Todas as cantigas

As cantigas de amigo

As cantigas sei lá de quê

E da puta que os pariu

 

O que me interessa

O que me interessa é mesmo o meu obituário

Limpinho

Desapegado do chão

Térreo

O veneno da saudade

Quando morre

Quando levanta voo e meses depois

Cornos no chão

 

E meses depois

Nada

Ainda dorme

 

Nesta cidade

Neste réstio de beijo

Esta cidade

E este beijo

São uma merda

Há três meses, três meses, que procuro cigarros

E não encontro cigarros para fumar,

Imaginem que eu procurava

O mar

Algo de

Apetecia-me algo

Algo de especial

Sofisticado

Poeticamente

Adornado

Imaginem

Que não encontrava

 

E eu juro

Eu juro que procuro

Mas não sei o que que procurar

Eu procuro uma pedra-pomes

Mas por estes lados

Ainda não existem

E desisto de procurar

Para povoar esta cidade

E este beijo

 

Eu procuro

Eu não me canso de procurar

Eu procuro uma sandália

Eu procuro, nem que seja apenas em contrafacção, os meus calções

Eu procuro nos lábios do luar

Mas o luar manda-me passear

Andar

Rua

 

Eu procuro na algibeira

E nada tenho a declarar

A não ser

O silêncio que guardo para te dar

E eu

Procuro

Eu juro que eu procuro

E não me canso de procurar

Mas não sei

O que procurar

 

Parece o meu obituário

Eu procuro

Procuro o que escrever nele

O que desenhar

Nele

Adorava que o meu obituário

Tivesse às vezes

Quando chove

Imagens da parte traseira das portas das retretes públicas

Tipo

Gosto de ti

Faz-me um filho

Imagina a mulher da tua vida…

Agora…

Imagina-a a cagar

Não gosto

E detesto

Construir o meu obituário

 

Sem saber

O nome deste mar

 

 

 

05/12/2023

Poeta das palavras

 

Lindo

Lindo menino

Menino poeta das palavras

Menino triste

Lindo menino das madrugadas

 

Posso

Não sei se tenho

Palavras

Ou flores

Lindo

Poeta lindo

 

Primaveras em lágrimas

Pássaros

Levitação das minhas mãos

Rezo

Pedir à floresta

Nuvens prateadas

 

Menino

Lindo menino

Lindo

Poeta cansado das palavras

Das palavras envenenadas

Pela mão do poeta

Menino

Lindo

Lindo apenas

Caminhar por esta estrada sem fim

 

 

05/12/2023

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Infância

 

Procuro no teu olhar

A noite, despida, nua

Procuro no teu olhar

A vida, não despida, não nua

Procuro no teu olhar

O mar

E não sei o que mais procurar

 

Procuro no teu olhar

A noite, e não sei se deva continuar a procurar

E se eu a encontrar

Que faço eu com a noite?

Despida e nua

E com olhos de chorar

 

Procuro no teu olhar

A noite, pedacinho de nada

E com voz de tudo

E com corpo de madrugada

 

E com mãos de magnólia dos meus poemas

Que também eles, procuram a noite

E encontram chuva, frio, e um pouco de paciência

Procuto no teu olhar

Fotografias da minha infância

 

 

04/12/2023

 

Procuro nos teus olhos

Nada procurar

Porque o que procuro

Não o consigo encontrar

Porque o que procuro

Não está no teu olhar.

 

04/12/2023

domingo, 3 de dezembro de 2023

Imagina meu amor

 

Ninguém quer poetas

E no entanto

Se todos os poemas se revoltassem

O homem fugia com o rabinho entre as pernas

E escondia-se num poço de merda

Não acreditam

Imaginem A Tabacaria em revolta

E o senhor Álvaro de Campos a comer chocolates

Imaginem Voz Numa Pedra

Do senhor Cesariny

Imaginem Horto de Incêndio

Do senhor AL Berto

Imaginem o caralho

Vocês não caralham nada

Nem imaginam nada

Que podem vossemecês imaginar

Que as pedras amam de igual como o homem ama as pedras

E se amam entre elas

Que os meninos fazem cocó

Muito cocó

E no entanto

São tão queridos

Quando não têm cocó

Imaginem

 

Imaginem porque estou aqui sentado

Quando descintado podia andar por aí

À procura de marmorites

E outras pedras de adorno

E outras pedras e afins

Mas vossemecês não conseguem imaginar

Imaginar um poeta

Sentado na sanita

A cagar

Imaginem duas pedras a escrever o amor

Na pele uma da outra

Elas amam-se

E odeiam-se

Mas desejam-se as duas

Quando o poeta abra a janela

Vê o mar

E mija…

Fingindo que está a fumar

E elas

Fingem que fingem o orgasmo da manhã

Quando o orvalho da manhã

Também finge

Finge que lê poesia no café

 

Imaginem um louco poeta

Um pequeno poeta

De abas largas

Para tapar o sol da manhã

E ofuscar o teu olhar

Mas vossemecês não conseguem imaginar

Vossemecês nem sabem o nome deste mar

 

Enterra

O do clitóris

Cleópatra e seu amante

Se o tinha

Se não o tinha

Tivesse-o

Mas vossemecês não sabem

Não sabem o que é ser poeta

Poeta mendigo

Ser poeta ser louco e ser mendigo

Desde que acorda

Até ao pôr-do-sol

E o resto do dia

Que se foda

 

Imaginem a lareira a ejacular palavras

Em vez de poemas

Em vez de lume

Do ciúme

Que há quem o tenha

Que Deus o acompanhe

Depois de nascer o sol

 

Imaginem o poeta

O triste do poeta

A vender poemas á porta do café

A imaginar cigarros

À porta do café

A engraxar sapatos

À porta do café

Claro que vossemecês não conseguem imaginar

Tão pouco o pão do diabo

Tão pouco

Imaginar

A paixão do poeta

Sem-abrigo e mendigo e filho da puta

Para uns

Para os outros

Nada

Imaginar

 

Imaginem

Imaginem duas loucas

Sobre os lençóis do desejo

Desenhando passarinhos na alcofa do prazer

Claro

Claro que vossemecês não conseguem imaginar

 

Tão pouco acreditar

Que o poeta

É louco

Que o poeta é miserável

Que o poeta

Ama

Fode

E come

Torradas ao pequeno-almoço

 

Conseguem

Conseguem vossemecês

Imaginar?

 

 

 

03/11/2023

Os poetas

 

Já ninguém gosta de poesia

Já ninguém

Lê poesia

Já ninguém gosta

E todos trocam

Amor por dinheiro

Já ninguém faz nada

E tudo é por interesse

Já ninguém toca guitarra

E tocam uma merda qualquer

Já ninguém lê

O senhor Alberto Raposo Pidwell Tavares

No entanto

Oiço-o todos os dias

Já ninguém ouve o senhor

Mario Cesariny de Vasconcelos

No entanto

Leio-o todas as noites

E no entanto

Todos eles

Os dois

Mortos

Falto eu penso eu

Três para jogar à macaca

Dois para saltar à corda

Já ninguém gosta de poesia

Já ninguém gosta dos poetas

Já ninguém se atreve a desafiar o dia

 

 

 

03/12/2023

Primavera

 

Porque chovem nos teus olhos

Estrelas

Pigmentos de luz

Porque brincam nos teus olhos

Crianças

Meninos com capuz

 

Porque escrevem nos teus olhos

Poemas

Todos os poetas do amor

Porque dançam nos teus olhos

Bailarinas de porcelana

E a Primavera em flor

 

 

03/12/2023