quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Eu COVID – a obsessão

 

Ouvi hoje (11-11-2020) na TSF o grito de alerta da Sociedade Portuguesa de Oncologia. Lamentável. Milhares de cancros não estão a ser diagnosticados devido à obsessão por parte das autoridades com a COVID-19.

Não se fazem rastreios, tratam-se mal os doentes oncológicos, e afins.

Como filho de doentes oncológicos, mortos no espaço de quatro anos, também me apetece gritar. Conheço, infelizmente o drama destes doentes e suas famílias. Horrível, apenas isso.

A COVID-19 existe, mas é apenas mais um vírus que vamos ter de aprender, a partir de agora, a conviver com ele.

Não abandonem os doentes oncológicos.

 

 

Francisco Luís Fontinha

11/11/2020

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Todas as cerejas

 

As cerejas serão sempre cerejas na tua boca.

Os lábios das cerejas, na tua boca, teus lábios, serão sempre o nascer do sol.

Das palavras, às cerejas, há sempre um poema envenenado,

Uma canção de espuma,

Na mão sardenta de um condenado.

Há sempre um drogado,

Entre poemas e textos de escrever,

As cerejas, quando doces, são frutos de querer,

São melodias do narciso,

Voando em direcção ao mar.

Depois, no final da tarde, todas as palavras se suicidam,

Dormem na boca das cerejas,

Depois, o beijo, das cerejas,

Parecendo o acordar dos pássaros embainhados pelo sono da Primavera.

Tenho em mim, na minha mão, as cerejas de beijar,

Tenho na minha boca as cerejas do desejo,

Quando no oceano todas as cerejas, entre palavras, se agitam como moças parvas,

Cidades entre esquinas,

Luzes de caminhar de encontro às esplanadas de brincar e,

As outras cerejas,

As cerejas de acariciar,

Pintam na clarabóia da insónia,

As planícies de amar.

Amam-se as cerejas.

Brotam da terra as cerejas mortas,

Caducas,

Velhas,

Onde alguém desenha hortas,

Árvores em papel… e,

Janelas abertas.

As cerejas, meu amor,

São o silêncio da bruma,

São barcaças,

São pingos de espuma;

Um telegrama,

Que não me grama,

Coça os tomates,

Puxa de um cigarro invisível,

Lê na tua mão, meu amor,

Que todos os restaurantes faliram,

Morreram de sono,

Pumba.

Fim.

Incrível,

As aldeias de xisto,

Cansadas,

Cansadas de tudo e de nada,

Visto.

Está visto.

Porta cerrada,

Número de polícia trocado,

O velho,

O farrapo,

O vagabundo.

Atravesso a calçada,

Limito-me a observar,

Os pombos que cagam,

Os homens que cagam nos pombos e,

Meu amor, as cerejas que esqueci na tua boca.

Alimento-me.

Sou um sem-abrigo com ordem de recolher;

Mas nunca, nunca serei um homem de obedecer.

Ponto.

Vivam as cerejas,

Porque de tão belas,

São doces,

São mulheres,

São donzelas.

E as abelhas?

Que se fodam as abelhas.

E as cerejas de comer.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 09/11/2020

domingo, 8 de novembro de 2020

Uma equação de fé, no teu peito.

 

O fim de tarde, minha querida.

A cidade vomita palavras abstractas que só a tempestade sabe prenunciar.

As flores poisadas na tua lápide parecem lágrimas de pássaros esquecidos nas árvores de ontem,

Procuro por um corpo, nada encontro e, apenas uma esquina de luz, longe, bem longe, acorda das sombras onde te deitas.

Vai distante o teu olhar de bom dia pela manhã,

Erguem-se as abelhas da colmeia colorida pelo silêncio da despedida,

Um SIM, um NÃO, ou… um apenas talvez,

Se deita no teu peito.

Visito-te todos os dias,

Conversamos,

Falamos sobre poesia,

Pintura,

Falamos das tardes inquietas de Luanda… ao final do dia.

Nada me falta, minha querida.

Tenho tudo e, nada tenho.

Não me apetece abrir a ponta de entrada, para este cubículo desorganizado, entre livros e rochedos, mesmo assim, nunca consegui, depois de te despedires de mim, olhar o mar.

Abro a janela, o mar longínquo deseja-me como um louco e, ainda hoje, minha querida, tenho medo da (lhá).

Um pilar de areia cai sobre a calçada.

Lágrimas de papel vivem disfarçadas no teu rosto; hoje, não choras.

O sangue invisível que corria nas tuas veias, hoje, é apenas uma fina lagoa azul suspensa na tarde, nada mais, minha querida, nada mais…

Hoje és apenas uma equação de fé que deambula pela casa descalça;

O medo.

Amanhã, quem sabe, “O fim de tarde, minha querida”.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 08/11/2020

 

A morte é uma merda, companheiro. Perdi o pai, perdi a mãe e, qualquer dia, talvez, perco-me a mim. O cancro é uma merda, companheiro. Só se fala no COVID-19 e esquecem-se os filhos do cancro, sabes, companheiro, a vida é uma merda. Aqueles filhos, filhas, pai, mãe, marido, mulher e tantos outros que se perderam nos túneis do cancro, mas claro, o COVD-19 é mais importante…

Perdi o pai, perdi a mãe e, hoje já não choro, às vezes grito, em silêncio, mas não choro. Sabes companheiro, tinha apoio psicológico por ter perdido os pais em quatro anos por cancro, mas com a pandemia, deixei de o ter; o COVID-19 é mais importante do que o resto.

Perdi o pai, perdi a mãe, mas hoje, hoje não choro.

A vida é uma merda, companheiro, às vezes todas as flores do no nosso jardim são estúpidas, são nocturnas cidades em cio e, mesmo assim, gosto delas. O Sal que alimenta a ferida do cansaço, os incêndios entre palavras que consomem resmas de papel higiénico e, dou-me conta que todos os meus livros apena servem para limpar o cu dos meninos crescidos à beira de sanzala de prata: a chuva miudinha das marés, o corpo envelhece no falso oiro, como mandibula açucaradas junto a um precipício, também ele, quase sempre, cansado de viver entre quatro paredes.

O cancro, companheiro, a morte, companheiro, são uma merda.

 

 

Francisco Luís Fontinha

08/11/2020