sábado, 29 de junho de 2013

Os silêncios envergonhados

foto: A&M ART and Photos

Deixei de ti os silêncios envergonhados
alicerces maleáveis com cabeça de madeira
deixei em ti o sulco prometido das rosas envelhecidas
cantigas da madrugada
cantigas... palavras húmidas
que o teu corpo absorve
como uma esponja recheada de lâmpadas de halogéneo...
como uma mão emprestada,

Cantei de ti
as cantigas profanadas nos jardins da insónia
gostei de ti em ti depois das estrelas sobre a cama nocturna com olhos de luar
entrarem em mim
deixei de ti
os silêncios envergonhados...
deitados os maleáveis sonos programados pelo relógio portátil em paredes ocas de gesso...
e um coração de ti parece romper as cordas que prendem a tenda do circo ao chão de areia,

Cansei-me de ti
em ti
por mim
entre colunas de granito e traves velhas de castanho...
cansei-me
das palavras ocas das paredes húmidas
em corações de gesso?
Mentiras de ti quando acordam em mim os silêncios envergonhados...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os muros de ontem em loucuras de hoje

foto: A&M ART and Photos

Saltávamos o pequeno muro todos os finais de tarde, após a escola, às vezes com milímetros de fome a brincar nos estômagos vazios, nós, nós existíamos apenas porque tínhamos de existir, era-nos proibido desistir, era-nos proibido entrar no quintal do senhor António Joaquim de Alicate, homem robusto, homem rude, e de poucas palavras,
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
Claro que eu, incrédulo comigo mesmo, saltei, caí, não me magoei... e consegui desprender-me das suas garras de lobo solitário, Palavras? Para quê? E ainda hoje, durante a noite, quando abro a janela e espero que regresse, sinto-as
Agora salta,
Sinto-as ao redor do meu esguio pescoço, como se fossem finos arames suspensos entre duas árvores, eu, incrédulo, vestido de palhaço, percorro o arame, e sinto-as, as mãos do senhor António Joaquim de Alicate e a triste bicicleta da menina Alzira, que ainda hoje, quase com noventa anos
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Claro que sim, responde-nos, e desde o salto mortal entre quintais, que ela, que ele, que nós, nós que supostamente não era para existirmos, inacreditavelmente, existimos, e ainda hoje, em todos os finais de tarde, saltamos os quintais invisíveis, alguns deles foram degolados por escavadoras e bulldozers, tal como o senhor António Joaquim de Alicate, robustos, de poucas palavras, para quê palavras?
Agora salta...
E eu saltei, voei sobre as espigas de trigo, e em vez de cair
Ainda hoje sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço,
E em vez de cair sobre uma leve cama de espigas de trigo com lençóis de cansaço, não, não ouvi as palavras dele, não percebi as palavras dela,
Ainda hoje
Menina,
Ainda hoje
Salta,
Ainda hoje
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
E eu, ainda hoje, não consegui poisar o meu corpo no doce chão, nós, três ou quatro, de quintal em quintal, saltávamos os pequenos muros, e eu, ainda hoje, tenho saudades do senhor António Joaquim de Alicate e da menina Alzira, e eu
Sobre o telhado do palheiro...
E eu, hoje, sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Das palavras não escritas

foto: A&M ART and Photos

Sentia as tuas mãos a sufocarem-me das palavras não escritas
promessas incompreendidas quando havia uma manhã de desejo
correndo encosta abaixo
afogando-se nas veias submersas em saliva que escondiam sombras do meu pobre esqueleto
ossos e pó deles envenenados pelas imagens a preto-e-branco dos meus lábios descoloridos,

Amargos
sofridos quando sabíamos que era o último reencontro após a partida em direcção ao nada
sabíamos e não o confidenciamos a ninguém
apenas trocávamos verdes olhares de verdes olhos
em frente à inocência saudade,

Sentia a tuas mãos de xisto
vagueando no meu corpo de árvore em papel paixão
poisavam pássaros em ti
e ouviam-se as tuas dolorosas canções de amor
caminhando sobre a praia-mar...

Uma floresta de carnívoras madrugadas acordava dentro de nós
quando abrias os olhos e sabias que já tinha partido
descia a janela com vista para as rochas mergulhadas no mar...
e procurava da noite dispersos gemidos de ti
que eu pensava serem versos nas folhas mortas do poeta,

O livro escrevia-se conforme se extinguiam as luzes dos nossos gemidos
formatávamos os nossos discos rígidos até percebermos que já não éramos nós
eu deixei de saber quem eras
e tu, tu percebias que eu não passava de um mero cortinado de areia
a brincar numa rua de Luanda...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um rio encostado aos seios desnudos da montanha

foto: A&M ART and Photos

Nada me apetece, nada me interessa, o sono chora dentro de mim como um rio encostado aos seios desnudos da montanha com corpo de socalco, uns míseros carris de aço contornam a barriga de pele lisa e perfumada, as videiras conversam com as mãos de xisto de homens e mulheres, alguns, filhos da montanha, herdaram-na dos avós, passaram a pertencer aos pais e dos filhos pertencerão, um dia, e se esse dia chegar, um comboio desgovernado roçará o sexo na água morna e serena do Douro antes do pôr-do-sol,
Nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário
E sempre a olhar os dias preenchidos com pequenas cruzes, depois de terminarem, novas cruzes, novos círculos, até que a noite seja noite, até que o dia morra dentro da garganta do mar,
O calendário submete-se aos critérios do crocodilo com dentes de marfim, tão velho, tão velho que se perdeu na idade, tão velho que nem o próprio luar se recorda do seu nascimento, e sempre, sempre pronto a resmungar com as letras de caligrafia antiga que vivem nas fotografias do álbum que trouxemos de Angola, e tão velho, tão velho como as lágrimas do amor...
Nada me apetece, oiço o grito desesperado do finalmente só, oiço a alegria das tardes antes de terminarem, mesmo antes da menina Andreia acender todas as luzes do silêncio, a musicalidade, a poesia, o reviver de sonhos esquecidos num fita de dezasseis milímetros, imagens, vultos passeando-se junto a umas pedras de nome
Albertina, Joana e Joaquina,
Três lindas flores, três belas montanhas, encalhadas entre um rio louco e um par de carris envelhecidos, encurvados, às vezes chorando porque as dores são intensas, as dores do cansaço, as dores da desilusão, as dores da vida quando deixou de existir vida nesta terra, as dores da solidão, quando entre multidões
Estamos sós, diz-me ela antes de baixar o estore e desligar o interruptor dos queixumes, das dores quando as dores não são físicas, quando as dores são dores, inventadas pelas noites intermináveis, pelas noites doentes com dores não dores
Albertina, Joana e Joaquina,
Três meninas, três sonhos, três jardins com três lagos, e onde brincam... três patos,
Quando entre multidões os esqueletos vadios confundem-se com as dores de não dores, quando entre multidões os dentes de marfim dele, deixam de lhe pertencer, quando os pássaros que voam dentro da cidade, cai a noite e todos eles, sem excepção, entram casa adentro, poisam sobre os arbustos que vivem na sala de jantar, um dia, tão velho, que me esqueci dele no velho calendário, um dia pareceu-me ouvir-lhe algumas palavras, poucas, escrevia-as tal como as ouvi, e ainda hoje, depois de muitos anos, tão velho, coitado, pergunto-me
Porquê?
Albertina, Joana e Joaquina,
Três patos, três pontes, e três barcos, tão... tão velhos como o teu corpo de seda
Pergunto-me,
Tão velhos como o teu corpo de seda, tão velhos como nós, e se te perguntar – Quem somos nós? - percebes que não somos ninguém, percebes que não somos papel, percebes que não somos palavras, percebes que não somos dias, noites, desilusões ou sonhos, percebes...
Que não somos nada,
Pergunto-te
Porquê?
E
Albertina, Joana e Joaquina, tão velhas, também elas, tal como nós... não o sabem, ou não querem falar,
Porque ainda existem palmeiras no largo em paralelos graníticos do tempo em que sabíamos quem éramos, sonhos, percebes?
E
Albertina cerrou os olhos como o fizeram todas as pálpebras da cidade esquecida no centro da montanha,
“nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário”,
No centro da montanha em púbis de cereja.
(e o calendário arde encostado à parede das tuas coxas de areia)


(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A falsa casa numa falsa morada (eu)

foto: A&M ART and Photos

Em meu sangue flutuas como uma porcelana adormecida
uma Rainha desesperada
voas entre paredes e muros e escadas...
em meu corpo habitas falsamente no compartimento exíguo
onde deixo durante a noite alguns dos meus sonhos,

Finjo ter em mim uma morada
uma pequena casa com asas de papel
é triste a fachada
uma casa com cortinados de aço
onde suspendes os teus desejos quando desce a noite em nós,

Em nós?
Se tu não existes como não existem as amoreiras da nossa infância
como nunca existiram as cavernas encastradas nas rochas junto ao mar
éramos dois barcos com velas desenhadas numa sombra vinda do céu
como vinham até nós (Nós?) os silêncios amanheceres das falsas madrugadas,

E inventávamos janelas de abrir no sorriso dos transeuntes
que dizimavam cigarros de enrolar
ouvíamos o ruído da água sibilando das finas esferas de açúcar
que brincavam no corredor da memória...
havíamos de reencontrarmos-nos numa qualquer paragem do eléctrico,

E nós?
Pergunto se algum dias existiu Nós em nós?
Um vocabulário apreendido pela polícia numa rusga em Alcântara
mesas cadeira e nós
nós? Quem somos nós?

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 27 de junho de 2013

São nove e qualquer coisa...

foto de : A&M ART and Photos

São... oiço-a no fino pano de espuma, que nos separa, oiço-a do esconderijo com folhas de azedume e janelas de neblina
São nove e qualquer coisa...
Antes das dez, presumo eu, nunca tive um relógio, não por difíceis condições económicas, mas porque sempre achei ser um utensílio, Objecto? Quase, recordo-o agora
(Objecto quase – José Saramago)
Desnecessário, pergunto-me para que me serve um relógio se eu nunca, nunca lhe obedecia, ou minto, fui um servo escravo dele, mas hoje, hoje não o sou, deixei de o usar, tenho-o poisado sobre a cómoda, passo por ele, logo de manhã, indiferente, sublime a luminosidade que consigo observar-lhe quando a luz incide sobre o mostrador com números brilhantes, a princípio, a princípio fiquei na expectativa se aguentaria viver sem ele, e consegui, e sinto-me feliz, muito feliz...
Claro que minto, caro que o tive e deixei de o usar,
O amor?
Entre dois pontos com coordenadas tridimensionais, algures no espaço, com apenas três coordenadas, e um referencial, percebo, que ele, o amor, vive, respira, habita nos corpos mais lentos da cidade, movimenta-se com dificuldade, é mutante, e raras vezes aparece depois de encerrarmos as luzes dos candeeiros a petróleo espalhados pelos silêncios dela,
Oiço-a
São nove e qualquer coisa...
Ainda não dez, brevemente, depois como uma louca corrida em direcção ao fim do corredor, ele, desaparece pelas sombras submersas nos cobertores dos divãs do amor, as escadas em madeira, barulhentas, rabugentas, doces, elas, as nádegas do relógio de pulso submergido no rio de suor da pele ausente que tu me prometeste, e que nunca
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira em prateleira, em risos, como os móveis teus cobertos por um velho lençol, deixaste de entrar em mim, deixaste todos os móveis do meu corpo protegidos por um branco pano, ausência de pó, vida medíocre, ausência de oxigénio, sempre com as minhas janelas fechadas como uma cancela em suspenso por dois pilares de cansaço, a embaixada
São nove e qualquer coisa...
Você não é Angolano,
Percebo que não sou, percebo que nunca o fui, percebo que a certidão de nascimento onde consta que nasci em Luanda, lamento informá-lo mas a sua certidão de nascimento é falsa, é falsa, como são falsas a respectiva cédula pessoal, como são falsas as fotografias, como é falso o cartão de vacinas contra a febre amarela
O quê? Qual febre amarela, rapaz... enlouqueceu,
Tudo é falso, eu sou falso, a embaixada
Você não nasceu em Luanda, você é um mentiroso, compulsivo, sou, pois sou, e garanto-lhe que nunca brinquei no Mussulo, e garanto-lhes que nunca vi, juro pela minha honra que nunca vi, não sei o que são, machimbombos, juro que não tenho terra, juro-o...
São quase dez,
Nunca cumpriste, nunca, escrever para quê?
(Objecto quase),
Em saltos de prateleira, dentro de um falso paquete, enganaram-me, disseram-me que nasci num local que não existe, falsos, disseram-me que vim num paquete, lindo, enorme, atraente como as meninas que passeavam junto ao Tejo, e não vim, e descubro que esse paquete nunca existiu, falsos, mentirosos, falsas infâncias, como os jardins da escola
Será que ela existiu?
São quase dez, diz-me ela, oiço-a..., em Portugal continental, e no entanto descubro que toda a minha infância foi uma mentira inventada por um menino que andava de calções e sandálias de couro, sentava-me debaixo das mangueiras e inventava histórias,
E inventou esta história, que nasci, vivi, e vim...
E eu, acreditei,
Como acredito nela que me diz que são quase dez horas, da noite?
(Objecto quase)
E eu, acreditei.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 26 de junho de 2013

As cinco torres de neblina

foto: A&M ART and Photos

Embebida nas drogas sintéticas do desejo
há palavras que brotam em teus alicerçados lábios de amanhecer
como pedaços de papel suspensos de um velho livro de poemas
há uma cadeira vazia onde te sentavas
e deixaram de existir os gemidos gonzos perdidos de ti,

Saboreando eu as ditas embebidas na tua doce boca
ou quando acorda o botão de rosa
e sabes que vem do espelho cinzento o vento que te enlaça
e enrola nos cordões de aço
sobre o rio em delírios nocturnos,

Abres as janelas das cinco torres de neblina
que sobejaram da alegre tempestade de alento
sabes que parti porque sou como as gaivotas
voando de mastro em mastro
em busca de alimento,

Sou
sou um falso carvão filho de um medíocre carvoeiro
que corre as ruelas da cidade numa bicicleta antiquada
não estou habituado a alimentar-me como as pessoas normais
talvez porque eu não seja humano… talvez porque eu sou um normal carvão,

Sem coração
profano
embebida nas drogas sintéticas do desejo
ela a Rainha das madrugadas em poesia
saltando de vez em quando os tristes muros da insónia...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 25 de junho de 2013

A revolta dos lençóis de linho

foto: A&M ART and Photos

Olhos, eu? Não os tenho... são apenas pedaços de xisto vagueando ente os socalcos do Douro e a imaginação invisível do sonho de voar..., uma velha metralhadora dispara sorrisos contra a parede de vento que separa os quintais, um pertence ao palhaço rico, e o outro, como nem podia ser de outra forma, é propriedade do palhaço pobre, quando criança queria ser palhaço, trapezista... ilusionista, qualquer coisa que rimasse com circo, qualquer coisa que me fizesse deslocar de terra em terra, e nunca, nunca ser pertença de nenhuma, não ter terra, não inventar rimas quando vinhas à janela, olhava-te e sorriamos como crianças entrelaçadas nas aranhas dos livros de banda-desenhada, imagina que eu fosse o circo, uma roulote, uma fera indomável, correndo e comendo carne até adormecer,
Imagina-me de bicicleta entre sombras de mangueira e gargalhadas de plátanos, imagina-me, não à janela do primeiro andar, mas... num rés-do-chão sobre rodas,
Imaginava-me prisioneiro a uma corda sem princípio nem fim, eu, um palhaço, um trapezista ou um malabarista engolindo fogo e vomitando pedaços de vidro, imaginava-me acorrentado aos abraços de alguém, que quando chegasse no final da noite,
Estou enjoada,
E eu confortava-a dizendo-lhe que provavelmente era do trapézio, ela olhava-me e sorria
E ente silêncios,
Do trapézio... Parvalhão que não percebe,
Nunca, quando chovia, nunca, quando montávamos a tenda e debaixo dela centenas de crianças, sorrindo, comendo pipocas, gelados, nunca, quando eu no palco travestido de cigana lançava-me às feras, elas diziam que eu
Do trapézio... Parvalhão que não percebe,
Disparam-se sorrisos contra a parede de vento, revoltam-se os lençóis de linho das nossas avós, e ardentemente, faço uma pequena sesta na minha infame roulote, e o melhor local para arquivar determinadas mensagens é sem qualquer dúvida a pasta “LIXO”, e enquanto me esticava no pouco espaço da roulote, olhava-me suspenso no tecto, e percebia que nunca seria eternamente criança, e que um dia a vida artística terminaria, deixaria de ser o trapezista, deixaria de ser o palhaço pobre, deixaria de ser o malabarista... e de to e sempre, deixaria de ser o menino do mar, e perguntar-me-ia
Do trapézio?... Parvalhão que não percebe,
E que não, nunca percebeu, e ainda hoje acredita que os olhos são apenas pedaços de xisto vagueando ente os socalcos do Douro e a imaginação invisível do sonho de voar...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

O gato “Orlando”

foto: A&M ART and Photos

Um círculo de espuma
no centro sombrio de uma tela mergulhada em insónia
junto à fronteira que separa a noite do dia
o mar rasurado misturando-se em lágrimas e pequenos silêncios de papel...
e de um sofá submerso em sonhos pincelados de sal... ouve-se o gato “Orlando” em gemidos de sono,

Ele inventa a madrugada sobre os telhados de Lisboa
e pinta nas manhãs de neblina a paisagem invisível do rio envergonhado
atravessado por uma ponte rabugenta
enferrujada pelo vento das nortadas entre despedidas e desejadas barcaças
derramando a solicitude em palavras abstractas e insignificantes,

O desejo em tua felina pele voando sobre as árvores do Tejo
confunde-te com gaivotas e pernaltas em pétalas de açúcar
barcos apaixonados
e astronautas
e no final do dia dizes-me que no Sábado vais ficar ausente de mim,

Habituei-me às tuas garras sobre o meu peito em papel-cartão
marinheiro tu saboreando sorvetes de chocolate como broches na lapela do mendigo artista
dormindo sobre a calçada e desenhando nos teus tornozelos as equações trigonométricas da paixão
e procurando ângulos no negro quadro separando a parte real da parte imaginária
os números complexos em ti descendo o corpo do círculo de espuma,

Estás nua
geada de sémen em migalhas de areia
correndo esquinas e travessas em madeira
pilares e vigas
e sorriso algum emerge dos teus lábios de cidade adormecida... vadia e prostituta.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Poesia sem Gavetas II – Participação de Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Como será o Outono?

foto: A&M ART and Photos

Fazes sentido depois de rasurada, destruída, tu, uma apenas folha de papel, sem nada a tapar-te o corpo desnudo, de pele flácida, como a madrugada, como o amanhecer, antes de acordarem as palavras, e de te vestires convenientemente para saíres à rua? Pergunto-me
Pergunto-te camuflada dentro das gavetas da minha velha secretária, em alguns pontos dela, o caruncho a procurar-te, e não te encontra, abro-lhe as gavetas, a primeira, a seguir, a última... e tu, tu não estás presente, apenas uma fina poeira...
Fazes sentido viveres em mim? Tu? Folha de papel amarotada, esquecida, às vezes, amachucada e deitada no caixote de rede entrelaçada, claro que não meu querido, claro que não, nunca serás o que eu fui, e nunca foste o que eu serei, depois, depois de partirem as andorinhas, depois caírem todas as folhas das árvores da nossa terra (será que ainda temos terra?), não sei... eu não tenho a certeza de ter uma Pátria única, una, sinto-me a tua folha de papel, rasurada, destruída, amachucada... nas tuas mãos, quando começa a noite e me tocas na face oculta, escondida, como as sombras dos candeeiros de naftalina, procuro-me dentro das tuas gavetas, encontro bugigangas, coisas mais parecendo objectos adquiridos por ti quando visitavas a Feira da Ladra, e nada trazias dentro de ti, e nada existia entre nós, eu, uma simples folha de papel, e tu, uma doce e bela caneta de tinta permanente,
Pergunto-me
Como será o Outono?
Gostava de ser como tu, não me preocupar com as palavras, não me preocupar com a saudade, o amor e a paixão, desistir de ti, ser apenas eu, uma caneta, uma triste caneta, sem letras, tinta, solitária como as janelas viradas para o quintal onde habitam roseiras, cravos e hortelã... o aroma do pericão, e a tranquilidade da tarde quando sinto que tu desististe de mim e te lanças, ao caixote de rede entrelaçada, amachucada, rasurada, triste, branca, branca... como a lua acordada em noites de luar, gostava de ser como tu, não saber ler, escrever, contar, um dois três quatro cem quinhentos, ser um andante na algibeira dos mendigos, e pergunto-me?
Valeria a pena?
Claro que não, claro que sim, não sei, talvez,
Como será o Outono de amanhã?
Talvez, não o sei, e não fazes sentido depois de rasurada, amachucada, depois de amarrotada, feita um bola, lançada à lareira, como fazíamos aos cortinados na casa de Favarrel, depois, depois..., valeria a pena escrever em ti? Não, claro que não..., talvez, amanhã, talvez ontem, talvez nunca, claro, percebo perfeitamente,
Tu, uma simples folha de papel,
Eu, uma triste caneta de tinta permanente...
Não, não quero, não preciso... das tuas flores.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Blogue Cachimbo de Água

Pedes-me “silêncio” e eu escrevo “silêncio” nos teus lábios de noite

foto: A&M ART and Photos

Sombras de ti dentro do espelho cansado em mim
saboreando livros invisíveis com odor a melancolia
um espaço vazio sombrio e escuro
entranha-se-te fazendo em ti a escultura linear da insónia
pedes-me “silêncio” e eu escrevo “silêncio” nos teus lábios de noite vaiada pela lua imaginária,

Pedes-me “amor”
e eu não sei escrever “amor” no teu corpo tridimensional vagueando pelo espaço-tempo
e buracos de minhoca
invento-te nas paredes do fazedor de versos
um transeunte doente com palavras apodrecidas,

Malcriado inocente nas bocas verticais de um triângulo rectângulo
pedes-me para escrever “hipotenusa” nos olhos do tua tangente
perco-me de ti
e não escrevo “hipotenusa” junto ao cateto das tuas coxas de cristal
escrevo-a no seno da tua saudade...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 23 de junho de 2013

Tenho-os dentro do meu esqueleto os antigos panfletos manuscritos, rasurados, nojentos, tenho-os, mesmo antes do nascimento do amor

foto: A&M ART and Photos

Sinto-me como um panfleto manuscrito, rasurado em determinados centímetros quadrados de área, sinto-me uma pulga vagueando no interior do pêlo fiel amigo meu canino, escondo-me das luzes, escondo-me dos paralelos desconformados, defeituosos, alicerçados a um passado que nunca, nunca existiu em mim um mar verdadeiro, silencioso, com ondas coloridas, calmas, docemente cinzentas como as flores do teu olhar, sento-me e esqueço-me da tua existência como mulher, criança, menina mimada, sempre em revolta, a brincar, às vezes, dentro da minha oca cabeça, recheada, a minha oca cabeça, com papel de parede floreado, que me servirá para alimentar o medo do quarto onde me deixam adormecer, deixavam? Também o desconheço, o ignoro, penso nas mãos dele e tenho-lhes medo, medo de ser acariciado como uma rosa quando acorda no jardim em desejados corações de incenso,
Tenho-os dentro do meu esqueleto os antigos panfletos manuscritos, rasurados, nojentos, tenho-os, mesmo antes do nascimento do amor, em mim, recordo a primeira paixão, talvez fosse o mar, o meu primeiro amor, ou... as mangueiras, ou... o meu fiel amigo chapelhudo, ou o abraço do velho Domingos quando regressava a casa, abria-me os braços... e eu, entrava dentro dele, até ao dia seguinte, até ser novamente manhã,
Lembro-me das tuas carícias, recordas-me tu em apenas três imagens, três simples desenhos inventados por ti numa noite de desenhos com literatura e vodka, ouvíamos “Dire Straits” sentados numas cadeira com uma estrutura flácida, como o sexo em noites de embriaguez, deitavas a cabeça no meu ombro, e voávamos sobre um Lisboa acabada de descobri, eu imaginava-te dançando sobre uma mesa num bar em Cais do Sodré, tu, não me imaginavas mas sabias que eu era um panfleto manuscrito, rasurado, como a montanha quando nascem os pássaros e a olham pela primeira vez, sorriem e exclamam...
Amo-o,
As tintas alimentava-te,
Amo-a,
Também, vestia-se de tela, e do corpo cresciam raízes pedestais em cúbicas cidades de areia, dançávamos como se não existissem madrugadas de poesia, como se não existissem rosas no jardim do amanhecer para alimentar-te os lábios pincelados de encarnado sangue, fluidos derramavam-se-te como espelhos em pedacinhos de luz, que reflectiam nos tectos das noites ausentadas, e percebia-se figuras não geométricas nos teus lençóis de insónia,
Hoje,
Amo-o,
As tintas alimentava-te,
Amo-a, o cansaço equacionado em triplas integrais numa ardósia junto à pastelaria onde comíamos os fabulosos pasteis de nata, Belém, a nossa casa, um relvado infinito de sombras, de braços entre beijos e sonhos, as árvores despiam-se e deitavam-se connosco, éramos muitos, muitas, o quê?
Amo-o, dizias-me tu enquanto te masturbavas no espelho invisível da noite, e no entanto, reconhecia os meus desenhos no teu corpo bronzeado, escuro, como os livros acabados de arder sobre as tuas coxas de silício, e ias à janela, e desaparecias como desaparece o fumo dos cigarros que hoje não fumo...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

O homem de papel

foto: A&M ART and Photos

Tão só como as andorinhas em papel
que brincam na tua mão exagerada
as migalhas do xisto mendigo correndo montanha abaixo
e depois
as carícias que a tua pele de neblina inventam no meu corpo de Primavera,

Vejo a névoa que os teus olhos alimentam à roldana das horas
voando entre finas esparsas manhãs com chocolate em pó...
dos ponteiros do meu relógio sem pulso
uma deslumbrante doentia pulsação esmorecendo nos finais de tarde
e entra-me o rio no meu corpo de madeira,

Encharca-me o peito
e sinto a inundação do meu coração... coitado
… à deriva como uma barcaça perdendo as letras do nome
em cada esquina da cidade com as sombras árvores em silêncios nocturnos
e eram assim os meus dias aprisionado em ti não o sabendo,

Em mim perdido como um charco de lama derretido no musseque da lentidão
desce a noite
cobrem-se-me as pálpebras com as palavras de ti
vagueando no cansaço espelho do guarda-fato o meu destino imaginário
….............
tão só,

As andorinhas em papel ardendo na lareira dos teus seios
submersos no meu peito
se ainda o tenho
porque não o sinto
porque... também eu transformei-me em homem de papel...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha