sábado, 5 de maio de 2012

Alucinação

Oiço a musicalidade do teu olhar rodopiando nos meus lábios, na minha boca seca encostas a tua língua adormecida pela noite de lua cheia, estás nua, e calças as galochas pretas...
(nada desta merda aconteceu; efeitos secundários do Champix)

Tecto da insónia

Deixei de perceber
as manhãs de primavera
deixei de olhar as plantas
e os pássaros de meu jardim,

deixei de escrever
palavras nas paredes do meu quarto,
cerrei a janela,
a porta,

e destruí a lâmpada de halogéneo
suspensa no tecto da insónia.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Em destaque no Sapo Angola

Nem que o coração me implore


Conheci um diário com o coração partido, pequeníssima fenda, mas para um coração dois milímetros é gravíssimo, desastroso,
Ouvia-lhe o ruído das engrenagens junto à fechadura, ouvia-lhe o tilintar de suspiros na tempestade da tarde, ouvia-lhe

as palavras derramadas no papel de parede, desenhos abstractos misturados com pedacinhos de poeira, e fumo de cigarro que embaciavam as lentes dos óculos do diário com o coração partido,

Hoje acordei cedo, abri a janela e a madrugada tinha desaparecido, evaporou-se no interior da alvorada antes da iluminação pública cerrar-se hermeticamente na chávena de café com leite, as torradas sonâmbulas dentro da minha boca recusaram-se à destruição maciça por parte dos meus dentes e o comprimido para deixar de fumar entrou garganta abaixo e possivelmente em sorrisos parvos, e possivelmente, sentou-se junto ao mar,

dois milímetros de uma janela no coração do meu diário, 4 de Maio de 2012, sete horas e trinta minutos,

Chove torrencialmente no meu quintal, um casal de melros a todo o custo protege as crias que adormecem no ninho pendurado na cerejeira sobre a casota do meu cão, pais e filhos estão felizes e o meu cão que detesta chuva está melancólico, triste, ausente, chove torrencialmente no meu quintal e pergunto-me ao olhar a janela de dois milímetros no meu coração se amanhã é sexta-feira ou quinta-feira ou domingo, é que com tanta chuva deixei de perceber os dias, as horas, os minutos e os segundos,

dois milímetros de uma janela no meu coração sem vista para o mar, chove torrencialmente no meu diário e lá fora, e lá fora o coração partido aos pulos como se fosse um pugilista ou um canguru nas margens de um qualquer rio encalhado na Austrália, talvez no Tua, talvez no Douro, talvez no jardim onde brincam plátanos e barcos de papel, talvez na minha mão

Conto os segundos, e oiço através da pequeníssima ranhura do coração do meu diário que hoje é sexta-feira, e se hoje é sexta-feira amanhã é sábado, dia de Antologia de Poesia Moçambicana, finalmente, finalmente as palavras do meu diário a boiarem dentro da chávena de café com leite, finalmente posso terminar o dia porque hoje, porque hoje recuso-me a escrever mais palavras nas suas páginas, nem que o coração me implore,

nunca mais vi o mar, e junto à fechadura o tilintar de suspiros na tempestade da tarde, ouvia-lhes as sílabas assassinas da noite antes de chegar a noite, ouvia-lhes as vogais embriagadas das estrelas antes de a noite ser noite e muito antes de encerrar o meu diário, muitos antes de saber o significado de mar,

Nem que o coração me implore.

(texto de ficção não revisto)

O limite do amor de X

O que é o amor?
Nuvem
pássaro
avião
uma gaivota sem asas?
Uma pedra sem coração
ou uma mão?
Não

será o amor
uma flor
e uma flor
o desejo do amor?

E uma pedra?
Ama
é amada
desejada
ou simplesmente contemplada...

(O que é o amor?
Nuvem
pássaro
avião
uma gaivota sem asas?
Uma pedra sem coração
ou uma mão?
Não)

o limite do amor de X é infinitamente grande
quando o X tende para o desejo.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A morte dos cigarros


Conheci uma mulher que dançava em cima de uma mesa,
- Olho o cadáver do cigarro prisioneiro nos pergaminhos das acácias da tarde, aos poucos uma nuvem cinzenta em pequeníssimos voos desaparece na fotografia onde me escondo junto ao Tejo, e percebo
E percebo que a mulher que dançava sobre a mesa está apaixonada pela fotografia onde me escondo, e que em todas as palavras que escrevi existe uma palavra invisível que só a mulher da fotografia consegue ler, que só eu consigo ler, SOLIDÃO,
- SOLIDÃO com feijão, SOLIDÃO com pão, SOLIDÃO de cabidela porque Não?
Peço ao cadáver do meu último cigarro que tenha paciência com o meu desespero, e que não faça mal à fotografia onde me escondo e aparece a mulher que dançava sobre a mesa, lembro-me como se fosse hoje, lembro-me de ver os cigarros embalsamados no cemitério de um bar em Alcântara, lembro-me de olhar para as nuvens suspensas no tecto e o tecto em pedacinhos de lã desaparecia em direcção ao rio, lembro-me da mulher vestida de negro a dançar em cima de uma mesa envelhecida e que de tempos a tempos, que em cadências malignas, rangia em desejos de orgasmo com sabor a Vodka,
- Lembro-me da SOLIDÃO dentro de um copo com três pedras de gelo, e desde então, tudo parece dormir em cima da mesa de madeira, restos de saliva pertencentes aos lábios da mulher vestida de negro aparecem e desaparecem no céu, depois de apagar a luz do quarto sem acesso ao telhado, lembro-me de sonhar com o acesso ao telhado,
Eu, a SOLIDÃO e a Vodka, os três em cima do telhado e três pedras de gelo, e lá de cima pintávamos os passos da mulher vestida de negro a dançar sobre a mesa de madeira, eu escrevia nas nádegas do silêncio os sussurros da mulher vestida de negro, a SOLIDÃO acariciava as mamas da Vodka com três pedras de gelos junto ao púbis, e os cigarros morriam
- É hoje,
Deus queira que seja hoje.

(texto de ficção não revisto)

Lua

Serei capaz
de atravessar a rua
sem olhar para trás?

Diz-me querida lua...
Chove muito.

quarta-feira, 2 de maio de 2012


Algures em Portugal... O povo está feliz, contente.

Promoção

Piolhos com cinquenta por cento de desconto
em cartão
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nem talão

vaginas tricolores
flores
meninas com tractores
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desempregados em cartão
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Piolhos
em cartão
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nem talão

com cinquenta por cento de desconto

um galo de Barcelos
ou um caralho das caldas

tudo em promoção
em cartão
com cinquenta por cento de desconto...

um tostão
em cartão
sem promoção
nem talão

(um galo de Barcelos
ou um caralho das caldas)

tudo em promoção
o pão
o sabão
e a prisão.

Navio sem nome

E o navio se esconde
e o navio se abraça,

e o navio sem nome
procura outro navio ou barcaça,

e o navio com fome
na cidade da desgraça
sem nome
sem graça.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Quatro paredes de ardósia

Limito-me a quatro paredes
de ardósia
e ao cheiro do mar,

limito-me às palavras de argila
semeadas nas tardes imaginárias
sem mendicidade
sem saudade
na cidade,

Limito-me a quatro paredes
de ardósia
e ao cheiro do mar,

sentado
não sabendo
que sendo amado
vou lendo...
um livro cansado,

ao acordar,

e ao cheiro do mar,

limito-me sofrendo não sofrer
sem perceber que a noite é como a morte
sem sorte
dentro de um corredor profundo
o mundo
ao adormecer.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

A tarde


Não conheço a menina de lado algum, tão pouco a matrafona que a acompanha,
- Olá eu sou o Vasco, Qual Vasco “Caralho”?, E que eu saiba não existe nenhum Vasco na minha vida, e não entendo a razão destes dois parvalhões, durante a noite, descerem até mim e entrarem nos meus sonhos,
A menina aproxima-se, aproxima-se em silêncios de amêndoa quando a primavera rompe as montanhas e do rio ensanguentado de pólen uma abelha saltita à procura das sílabas do mar, o parvalhão do Vasco olha-me entre dois pedaços de marmelada e queijo de cabra, oiço da fazenda contigua ao palheiro os gemidos do bode, Raios o partam Grita a menina de mão dada ao Vasquinho,
- Qual Vasco “Caralho”?,
O chibo irritado às marradas contra o canastro plantado no canto esquerdo da eira, sento-me e começo a sentir a afamada comichão dos resíduos do milho, imagino o meu avó, imagino o tio Serafim, imagino os velhos com esqueletos transparentes às voltas com o malho, e uma finíssima poeira entra dentro de mim,
- E por instantes esqueço os dois parvalhões que me visitam durante a noite, a menina e o Vasquinho, e em frente ao espelho do guarda-fato vejo-me em Carvalhais – S. Pedro do Sul, e oiço o bater do malho na eira, e em gestos desorganizados digo ao meu avó Domingos (que se enervava com o nome porque dizia que Domingos era nome de preto e que todos os pretos se chamavam Domingos), e digo ao meu avó Domingos que para a tarde terminar em beleza apenas faltam os Fingertips, Que tal Avó?,
É o que eu te digo meu filho Arranja uma gaja rica, E calo-me porque não foi isso que lhe perguntei, E calo-me porque essas coisas de riqueza...,
- Prefiro mesmo ouvir os Fingertips,
Portanto à questão do porquê da visita de dois parvalhões durante o meu sonho, a menina e o Vasco,
- Olá Eu sou o Vasquinho!,
Qual Vasco “Caralho”? Arranja mas é uma gaja rica e deixa-te de “merdas”.


(texto de ficção não revisto)

Ubuntu 12.04 LTS

Aos olhos

Aos olhos
a paixão pigmentada do cansaço
o murmúrio das palavras
em sexo num vão de escada
gemidos descem do sótão
como crianças embriagadas no berço da tarde

aos olhos
dos olhos
a literatura com chá e torradas
e sumo de laranja

e palavras

e murmúrios

aos olhos

aos olhos
o silêncio da noite
dentro de uma caixa de sapatos
sem janelas
sem gatos
aos olhos

e palavras

e murmúrios

e conversa fiada.

Também sou humano

Também sou humano
tenho pernas e braços
e preciso de comer,
também sou humano
tenho pernas e braços
e preciso de viver,

também sou humano
tenho pernas e braços
e preciso de caminhar,
também sou humano
tenho pernas e braços
e preciso de trabalhar.

domingo, 29 de abril de 2012

Com asas

Um cachimbo com asas
abraçado a uma pomba tricolor
uma fogueira sem brasas
que beija as pétalas de uma flor

um cachimbo com asas
mergulhado no oceano do cansaço
um cachimbo rasca
à rasca
na sombra de um abraço

sem brasas
o cachimbo adormece sobre um livro doente
o cachimbo é eterno e infinitamente mente
com asas

um cachimbo prateado
cansado
moribundo
coitado do “Edmundo” (e não conheço nenhum)
chega a casa e sente
os gemidos do cachimbo doente
que infinitamente mente
que infinitamente com asas
em brasas
os lábios da sua amante
prateado
coitado

coitadinho do cachimbo
no limbo
sem sorte
à espera pacientemente da morte
coitado
deitado

com asas.

Vida sofrer

A esta miséria viver
a que chamam de vida sofrer

caminhar numa rua sem saída

a esta miséria viver
quando escrevo um poema sobre o mar
a que chamam de vida sofrer
a que chamam silêncio de amar.