sábado, 28 de janeiro de 2012


84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Lápide

Amar uma pedra
Que da poeira se constrói a noite
Não uma pedra qualquer
Não uma noite igual a tantas outras noites
Eu só
Amar uma pedra
Onde vão escrever as minhas palavras
Numa noite sem estrelas

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Fim da viagem

Todas as viagens têm um fim, partimos de um ponto A para chegarmos a um ponto B, mas quando percebemos que o ponto B não existe, nada a fazer, porque só um louco continua a caminhar para um destino inexistente.
E ainda não estou louco, acredito eu.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha
Desceste as escadas e atravessaste a porta da madrugada, não corri atrás de ti, adormeci junto à janela sem olhar para o rio, e quando acordei procurei o teu perfume na saliva da noite, e a noite tinha desaparecido, e tudo desapareceu…

As luzes da noite

Desliga-se o meu corpo
Das luzes da noite
Cessam todas as palavras suspensas em mim
Quando à janela do meu olhar sorri a tempestade
O mar jamais voltará a ancorar nos meus braços
E todos os rios desistiram de correr para o mar
E todos os mares morreram dentro de um sonho
Desliga-se o meu corpo
Das luzes da noite
E caiem pedacinhos de solidão
Do teto do meu quarto
E percebo que estou só

E percebo que a vida deixou de sorrir
E percebo que dentro de mim apenas silêncios
À beira de um cais

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Rodrigues Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O silêncio da vida

A vida é um silêncio
Que caminha entre a alvorada
A vida não vale nada
A vida é um silêncio suspensa numa roda dentada
Em aço inoxidável
Entre as pernas de um mendigo
Deitado na calçada
Ai a vida saudável
Ai a merda da minha vida miserável
A vida é boa
Quando na cama deitada
Despida e sem saia e agarrada…
Às ruas de lisboa
E entra na madrugada
E desce a madragoa
Embriagada
A vida é um silêncio
Que caminha entre a alvorada
Sem pressa sem nada

TODOS DIAS TESO – TDT

Toda a gente muito aflita com a porcaria do TDT, e eu, e eu que há muito tempo disponho de TDT confesso estar farto, confesso… não confesso,
Porque para mim TDT quer dizer TODOS DIAS TESO,
Portanto meus caros leitores, não tenham pressa, porque o TDT entra-vos em casa, e depois, e despois para sair é um cabo dos trabalhos…

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Regressar

Toda a minha vida sonhos,
Sonhos e alguns impossíveis de realizar, mas há um sonho que nunca deixei de acreditar, há um sonho que não me deixou morrer,
Não sei se é doença mas a verdade é que sou um inadaptado, e nunca, nunca consegui superar a separação de Luanda e vivi sempre emerso em angustia e dor,
Dentro de mim existiu sempre algo a puxar-me e sempre acreditei em regressar à terra onde nasci, e acredito que vou conseguir,
Ter a nacionalidade angolana e regressar.

Algibeira da morte

Entras-me no sangue
E caminhas nos túneis em plástico que dormem sobre a mesa-de-cabeceira
Entras e extingues-te como uma andorinha
Ao terminar a primavera

Desces cansaço embebido em drageias de néon
E um rio de sémen na algibeira da morte
Agarra-se aos meus braços e leva-os para a montanha
Povoada de ossos

É noite
E entras-me no sangue
E caminhas…

Fumo os últimos cigarros
No corredor longínquo
Onde passeiam petroleiros e plátanos desiludidos com a vida
E o que farei depois de terminarem os cigarros?
E quando a montanha deixar de ser a montanha…
O que farei?

É noite
E entras-me no sangue
E caminhas…
E todos os componentes metálicos do meu corpo
Abraçados à ferrugem
O que farei quando deixar de ter cigarros?

E quando a montanha deixar de ser a montanha?
O que farei dentro da montanha
Com ossos
Sem árvores
Sem cigarros…
Na algibeira da morte

Fumar no interior do automóvel

Proibição de fumar no interior do nosso próprio automóvel, e eu que sou doente (viciado em cigarros) não posso usufruir de um prazer, de outra coisa qualquer para os outros.
Onde está a legitimidade de os outros condicionarem aquilo que faço ou não faço dentro do que é meu? E qualquer dia nem dentro da minha própria casa posso fumar, e se há pessoas que não suportam o cheiro do cigarro, também eu não suporto o aroma de perfumes, porque sou alérgico, e mesmo assim não posso proibir aqueles que os usam de os não usar.
Proibição de quecas dentro do automóvel? Provavelmente qualquer dia um parvalhão qualquer vai dizer que é maléfico para a coluna, ou que sexo dentro de casa só uma vez por mês, e portanto este país está a tornar-se doente mentalmente.
Sou ateu; Qual a minha legitimidade de obrigar aqueles que acreditam em deus em não acreditar, só porque eu não acredito?
Pois eu continuarei a fazer aquilo que sempre fiz, quer seja dentro do meu automóvel ou dentro de casa.
O cigarro provoca o cancro. E o que têm vocês a ver se eu morrer de cancro? Vou dar despesa ao SNS, mas eu em cada maço de cigarros já estou a pagar para o SNS. E os alcoólicos? Não dão despesa ao SNS?
Criminalidade por problemas de álcool tenho conhecimento, por fumar cigarros penso não existirem…

Espelho


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

E hoje não barcos

O barco despede-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo,
- Nos meus sonhos aparece sempre um barco Confessa-me ele enquanto tomamos café na esplanada e que quando menino, aos domingos, a religiosa visita ao porto de Luanda,
Fascinavam-me aqueles monstros poisados sobre a água, às vezes recebia por parte de um deles um sorriso ou um simples acenar de bracinhos,
- Deslarga Pai
A mão do meu pai e com a minha mãozinha de caule de malmequer acenava e sorria e quase sempre ficava a chorar porque não entendia naquela idade a solidão dos barcos,
- Pai os barcos sonham? E que sim e que um dia entravam nos meus sonhos,
E hoje não porto de Luanda, e hoje não barcos, e hoje não domingos
- Deslarga Pai
Não domingos às voltas da Maria da Fonte,
A mão dele soltava-se como quando numa manhã de setembro um paquete soltou-se do porto de Luanda, e de saluço em saluço, e de rouquidão em rouquidão, começou a entrar mar adentro, e deixei de ver a cidade
- Pai os barcos sonham?
E deixei de ver a cidade como qualquer dia vou deixar de ver a mão dele, e em vez de barcos nos meus sonhos, uma tela negra a despedir-se do término da tarde, desce vagarosamente as portadas do postigo com acesso à noite e em passo apressado deixa a Ajuda embrulhada em estrelas e mergulha no Tejo.

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Ai o amor

Uma duas três… quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar,
E pergunto-me o que fazem quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala e ninguém e ninguém responde, como sempre, nunca ninguém responde às minhas inquietações,
- Precisas de um psiquiatra,
E eu preciso é de uma psicóloga que perceba
- Gaivotas Francisco?
Que sou perfeitamente normal como os plátanos do jardim, tive sonhos, adormeço e acordo, amo,
- Ai o amor…
E fui criança e fui menino e brinquei de papagaio de papel na mão à volta das mangueiras,
Uma caixa de sapatos com paredes de vidro e uma tampa encarnada de onde descem beijos amestrados e tartarugas marrecas, ai o amor… o amor é fodido segundo Miguel Esteves Cardoso, para mim, o amor é uma caixa de sapatos cheia de neve que há muitos anos um menino parvalhão revolveu atulhar até ao teto encarnado,
- Precisas de uma psicóloga meu rapaz,
E preciso
- Gaivotas Francisco?
Preciso urgentemente de um médico legista que faça do meu corpo a praia do Mussulo, preciso urgentemente de um médico legista que desenhe barcos e petroleiros e putas em Cais de Sodré no meu corpo, preciso
- Entro no Texas e as putas amam-me Sempre me amaram as putas da noite e os paneleiros dos jardins de Belém,
Preciso Eu preciso de fazer alguma coisa para que a minha vida deixe de ser uma merda, quarenta e seis anos, desempregado, quase sem abrigo, sem futuro segundo a minha mãezinha,
- E o que será de ti desgraçado depois de eu morrer,
Entro no Texas e as putas amam-me e as putas gostam de poesia, sentava-me e fazia versos nos lábios de meninas adolescentes,
- Ai o amor…
O Miguel que é fodido e eu uma caixa de sapatos com teto encarnado,
- E preciso urgentemente de uma psicóloga, preciso de uma psicóloga que analise os meus desenhos, E desde que uma me mandou desenhar uma árvores e como resposta e como resposta
Que eu estava apaixonado
Está loucamente apaixonado, foda-se pensei eu, o que tem o desenho de uma árvore para estar apaixonado?,
E estava e desde essa data fiquei com raiva aos psicólogos porque através de desenhos conseguem desvendar os nossos segredos,
Quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala, Porquê Caralho?,
- O quê? Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e pareço a Cristina da Comissão das lágrimas de António Lobo Antunes com as malditas vozes na cabeça,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, e confesso que nunca vivi em Luanda, e confesso que nunca vivi na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, tudo mentira senhor António Lobo Antunes, tudo mentira,
Tão pouco sei onde fica Angola,
- Mas estas vozes,
E preciso urgentemente de um médico legista que do meu corpo construa um papagaio de papel para brincar nos céus de Luanda,
- Porquê Cristina? Questiona-me o Lobo Antunes e confesso que não sei, Não sei… mas que estão quatro gaivotas suspensas no teto da minha sala lá isso estão,
Estás bêbado sussurra-me uma voz de papagaio que julgo vir do cortinado da janela da sala sem vista para o mar, e as putas do Texas amavam-me, e os barcos do Tejo amavam-me, e as gaivotas do Tejo amavam-me, e os paneleiros de Belém
- Verdade senhor António Lobo Antunes… por favor não me torture mais, verdade que nunca vivi em Luanda nem na Vila Alice nem no Bairro Madame Berman, juro por deus que nunca acreditei,
Que as putas do Texas me amassem, que os barcos do Tejo me amassem, que as gaivotas me amassem, porque nunca fui amado e porque nunca vivi em Luanda,
- Ai Cristina As malditas vozes,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita que tem quatro gaivotas suspensas no teto da sala, e quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que acredita ter vivido em Luanda, que diz ter brincado na Vila Alice e no Bairro Madame Berman,
. Tudo mentira Cristina, Tudo mentira,
E quer lá saber o António Lobo Antunes de um gajo que diz
- Preciso urgentemente de um médico legista,
Ter brincado no mar do Mussulo,
O Miguel que é fodido e eu que é uma caixa de sapatos com teto encarnado, e estranho, nunca perguntei ao António Lobo Antunes o que é para ele o amor…
- O que é para ti o amor Cristina O Lobo Antunes enquanto folheia a comissão das lágrimas.
Ai o amor, quarenta e seis anos, desempregado e sem futuro e uma psicóloga que afirma que eu estou loucamente apaixonado… porque desenhei a puta de uma árvores sentada no banquinho do Texas e nos lábios de adolescentes escrevi versos que nunca ninguém leu, versos que ninguém lê, e que os paneleiros dos jardins de Belém adoravam em noites de lua cheia.
O que é para ti o amor António?

(texto de ficção)

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A carta de Amor

Há coisas que nunca devem ser feitas na vida,
Não me refiro à noite em que me passei da cabeça e queimei a grande parte dos meus desenhos e textos e poemas numa lareira do Bairro do Hospital quando tinha vinte e poucos anos e mais tarde percebi que Nikolai Gógol tinha feito o mesmo com “Almas mortas”,
Mas refiro-me a uma carta de amor E já sinto nas vossas cabecinhas a pergunta pertinente Porquê uma carta de amor?,
Porque numa noite de copos na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam, incluindo eu, um dos presentes, bom rapaz e muito honesto e muito simples e coitado… que carregava nos ombros uma história de abandono por parte da mãe e um pai todos os dias embriagado com uma ninhada de irmãos, e de instrução quase nenhuma porque abandonou a primária nos primeiros anos para ganhar para a casa
- Porquê uma carta de amor?,
Para ganhar para a casa as letras para ele pareciam os carris da linha férrea Pinhão-Régua em assobios dentro dos socalcos do Douro, e com ele guardava religiosamente uma carta da namorada que tinha chegado nessa tarde, e pensava ele que dos cinco eu era o que tinha mais juízo, e juro que quando me olhava ao espelho acreditava ser um menino de igreja que depois da solene deixou de frequentar, não incluindo as faltas à catequese da Benigna, mas adiante, pede-me
- Podes ler-me esta carta se fazes favor E eu cá para mim Já te lixaste,
Pede-me e já a carta poisava nos seios da minha mão, começo silenciosamente a despi-la e aos poucos pela janela do envelope começam a acordar corações desenhados a marcador encarnado e a palavra Amo-te a todo o comprimento do lençol e milhões de beijos,
- Na Ajuda onde seis marialvas bebiam e comiam,
E amor eterno até que a morte Até que a morte nos separe,
- Então Fontinha o que diz?,
Respondo-lhe que era melhor ele não saber, Porque eu precisava de tempo para inventar uma estória, e fazendo o papel de leitor de uma carta de amor disse-lhe os maiores disparates incluindo o fim do namoro e ao cair do pano um par de cornos, e claro que nada daquilo existia na carta, mas ele acreditou,
- Não chores pá Gajas há muitas Dizia-lhe um dos marialvas,
E chorava e chorava e chorava,
E foi muito difícil convencê-lo que tudo não passava de uma brincadeira de cinco gajos que bebiam e comiam… e estavam fartos das noites da Ajuda,
- Então Fontinha o que diz?,
Que há coisas que nunca devem ser feitas na vida, uma delas, gozar com os sentimentos dos outros…


Francisco Luís Fontinha

23 de janeiro

E que pegasses na minha mão e me levasses a ver o mar e com os teus lábios escrevesses nos meus lábios
- Amo-te e estou apaixonada por ti,
Escrevesses nos meus lábios o encanto da noite quando todas as luzes dormem, quando todos os barcos sonham, quando todos os pássaros voam,
E era tudo o que eu queria ouvir de ti, Hoje.

23/01/2012
Francisco

domingo, 22 de janeiro de 2012

Versos a um amor impossível

Um dia enquanto urinava num urinol público de Belém, junto à esplanada onde me estacionava nos finais de tarde a olhar o tejo, a comer bolas de Berlim, a beber café e água sem gás, a ler e a escrever versos a um amor impossível (porque nos finais dos anos 80 acreditava existirem amores impossíveis, e com o andamento da roda da vida percebi que a impossibilidade só existe na nossa cabeça), lembro-me como se fosse hoje, na altura andava a ler “Doutor Jivago” de Boris Pasternak, prémio nobel da literatura em 1958 e impossibilitado de o receber por razões políticas, e tal como os amores impossíveis, as coisas mudam, e hoje seria diferente,
E enquanto apreciava o meu rosto impresso nos azulejos da casa de banho pública de Belém percebo pela sombra que alguém ao meu lado direito olhava o meu coiso, e claro que na altura era normal por aqueles lados, mas eu ficava sempre chateado porque a jogar ao montinho na arrecadação do Moreira não tinha a mesma sorte, isto é, de seis montes eu parvalhão escolhia sempre o monte de menor valor, e o Moreira
- Já te fodeste,
E se eu tivesse tanta sorte ao montinho como tinha para ser atraído por panascas, acreditem que hoje tinha, não diria um mercedes, mas que hoje tinha uma lambreta, e não é mentira nenhuma,
E o Moreira sempre com uma sorte do caraças a arrebanhar moedas e a assar chouriços roubados na cozinha, e quando numa noite apagava as labaredas da cama porque o álcool onde púnhamos o chouriço a laminar saltou e ficou-se a dormir como um anjo barrigudo Diz-me
- Sorte ao jogo Azar ao amor,
Diz-me E eu fodido sem moedas e eu fodido com um gajo de meia-idade a olha para o meu coiso que de tanto envergonhado começou a diminuir até desaparecer no tejo,
E eu na altura confesso Nem sorte ao jogo Nem sorte com amores impossíveis Mas tinha uma pontaria para ser assediado por panascas, e procurei e procurei e procurei…
- Coiso nenhum E só mais tarde percebi que já andava em banhos no tejo, e quando olho o senhor de meia-idade, feio e sem dentes, com óculos de fundo de garrafa e ainda por cima com bigode de piaçaba de desagarrar merda das sanitas Confesso que me assustei e não condeno o meu coiso por ter dado de frosques e ir a banhos para o tejo,
E hoje podia ter no mínimo uma lambreta
- Já te fodeste,
No mínimo uma lambreta, mas quis o destino que não, e hoje desse tempo tenho meia dúzia de fotografias e três caixas de cartão com versos a um amor impossível, escritos numa esplanada de Belém junto a uma casa de banho pública onde numa tarde de agosto um senhor de meia-idade engraçou com o meu coiso,
- Sorte ao jogo Azar ao amor,
E os chouriços até que se comiam embrulhados em cerveja.

(texto de ficção, inspirado na minha passagem por Belém – Maio de 87 / Agosto de 88)

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O jeitoso engomado

O jeitoso engomado encosta-se ao parapeito do vento, pesca um cigarro entre os destroços da algibeira e acende-o com a lente dos óculos, a princípio gotinhas de fumo dispersam-se pelas marés ruivas da tarde, depois, gargalhadas de fumo contra os uivos fabricados no sótão do prédio em frente,
- Ai Ui Foi tão bom,
O cigarro incha e cresce na boca dele como se fosse uma barra metálica ou um pénis argamassado entre o beiral e a clavícula do mendigo sentado no passeio a pedir esmola queixando-se que a reforma não chega para viver, o pénis furiosíssimo
- Não chega? E eu quase sempre teso,
Furiosíssima a clavícula pendura-se na cabeça do mendigo e o jeitoso com voz de malmequer,
- A menina dança?
E que não Não sei dançar responde-lhe a menina,
- Ai Ui Foi tão bom,
O jeitoso engomado pega nos restos mortais do cigarro e entrega-os ao senhor proprietário da funerária onde num pedaço de cartão pendurado sobre a entrada podia ler-se “FASEMOS INTERROS SEM FATORA”, combinam o preço e o jeitoso engomado ao sair do estabelecimento comercial manda foder o mendigo e diz para a clavícula
- Foi tão bom,
E diz para a clavícula Hoje foi um dia de merda, e em passos clandestinos desce a calçada em direção ao rio.

(texto de ficção)