sábado, 7 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

As estrelas da saudade

É em ti que escondo as palavras
Dos silêncios da manhã
É em ti que cerro os cortinados da solidão
Quando a noite me vem buscar

É em ti que os meus braços prisioneiros do mar
Brincam nas asas dos teus olhos
Quando me sento junto ao rio
E de ti vêm as estrelas da saudade

É em ti que me deito
E é de ti que crescem os sonhos e as nuvens e a chuva…
De ti bebo a poesia
Quando em ti um jardim imaginário se deita na tua mão

E eu sem ti
Sou uma rocha magoada
Uma árvore que tomba na calçada
E vens tu
E me levantas do chão
E sobre mim semeias a madrugada

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A chuva das palmas

A chuva das palmas ilumina o casebre, Marilu, travesti e puta ao domicílio, Marilu dança como se fosse um orgasmo fictício engasgado na penumbra da noite, do teto cordas de sémen descem até ao pavimento lamacento do casebre, e
- A chuva das palmas,
E desaparece dentro da abóboda celeste,
Marilu começa a voar sobre as cabeças iluminadas pela chuva das palmas e no pénis amarrotado uma frase que faz questão de mostrar ao respeitado público A terra é de quem a trabalha e o meu querido pai que não é parvalhão nenhum Sussurra,
- Mas o fruto é que quem o come,
Muito bem Muito bem Camarada Presidente,
Ele encostado à porta de entrada com a respetiva chave e quando tenta introduzir a chave no buraco da Marilu
- Peço desculpa,
No buraco da fechadura o seu escudeiro mor segreda-lhe Camarada Presidente os dentes para cima,
E ele levanta a cabecinha e arreganha a dentadura e a porta nem se mexeu, o escudeiro percebe que o Camarada Presidente,
- Fuzilem imediatamente este homem,
A chuva das palmas quando a centímetros o Anjo marreco desejoso de saltar para cima da Marilu mas Mas o fruto é de quem o come e a Marilu é de todos e o Anjo marreco candidato à isenção de taxa moderadora, um orgasmo fictício engasgado na penumbra da noite, do teto cordas de sémen descem até ao pavimento lamacento do casebre,
- Muito bem Muito bem Camarada Presidente E desaparece dentro da abóboda celeste,
Peço desculpa mas não aguento mais estes malditos bombos e estas malditas cordas de sémen e a puta da Marilu travesti e homem,
Com o pénis amarrotado e uma inscrição a tinta doirada A terra é de quem a trabalha e claro que sim Muito bem Camarada Presidente Muito bem mas Mas o fruto é de quem o come,
Uma chuva de palmas fictícias ilumina o casebre
- Peço desculpa,
A chuva das palmas ilumina o casebre e um orgasmo fictício engasgado na penumbra da noite escorre pelo cantinho da boca do Camarada Presidente,
- Fuzilem imediatamente este homem, e a ordem de serviço rigorosamente cumprida,
Marilu que já se encontrava nos braços do Anjo marreco foi espancado foi torturado e por fim cortado em filetes de fantochada,
- Mas o fruto é que quem o come,
Termina a chuva das palmas.

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Saudade

Saudade
Quando sobre o meu corpo envelhecido
Poisa a tempestade
E de um rio cansado
Nuvens de néon chocam contra a solidão
E a manhã agarrada ao muro de vedação
À janela eu fico esquecido
E mergulho nas mãos do poema ancorado

No poema fantasma que alimenta a saudade
Quando sobre o meu corpo envelhecido
Os meus olhos fingem ver a cidade
Quando a cidade parece ter morrido

E da tempestade acorda a harmonia
E às flores regressa o amor das palavras com sentido
E chovem gaivotas de fantasia
No meu corpo envelhecido

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O buraquinho da agulha

O problema não é a solidão nem a queda da folha nem a chuva nem o vento, o problema é que estamos velhos Queixam-se os plátanos do jardim quando por lá ando durante a noite a matar o tempo e a esconder-me das estrelas,
- Deseja fatura? Não Não desejo e nunca vou pedir e se quiserem multem-me Para que raio precisa de fatura um desempregado? Só se for para enfiar…
Para enfiar a linha nu cu da agulha a minha avó silvina quase com noventa anos não precisava de óculos Esticava o bracinho esquerdo onde religiosamente segurava na agulha e com o braço direito zás e nunca falhava e eu saboreava aquele momento de excitação em que um pedacinho de linha entrava sem qualquer sacrifício no buraquinho da agulha,
- A fatura se faz favor E eu não tenho e eu não pedi Porquê? Vou ter que o multar e Multe e faça o que quiser vá para o raio que o parta,
E eu pergunto-me se hoje a avó silvina fosse viva Estás tão magro meu filho Ando a fazer dieta E eu pergunto-me onde está a fatura dos cigarros que tiro nas máquinas estacionadas nos cafés,
- Enfio as moedinhas carrego no botão e cigarros para um lado e fatura para enfiar…, Nada, E eu pergunto-me se também vão multar a máquina dos cigarros por não dar fatura,
E eu pergunto-me se hoje a avó silvina fosse viva E respondo-lhe que ando em dieta Ando em dieta Avó sabe como é nos tempos que correm não se pode comer muito e evita-se a diabetes e a obesidade e
- O cardápio se faz favor Cardápio segreda-me a enfermeira Sim Cardápio Não sabe o que é? Quando se entra numa urgência é preciso primeiro saber muito bem os preços das coisas,
E se fosse hoje possivelmente o teu avô não diabetes Não vá o diabo tesselas e sair daqui sem calças e sem rabo e a avó silvina quase com noventa anos não precisava de óculos Esticava o bracinho esquerdo onde religiosamente segurava na agulha e com o braço direito zás,
- Enfie a fatura no
Zás e a linha transformava-se nas ondas do mar do Mussulo sobre a areia limpa da manhã quando me pegava na mão e me obrigava a ir à missa e eu furioso a olhar para o teto da capela do Bairro Madame Berman,
- O problema não é a solidão nem a queda da folha nem a chuva nem o vento, o problema é que estamos velhos Queixam-se os plátanos do jardim quando por lá ando durante a noite a matar o tempo e a esconder-me das estrelas E vejo a avó silvina quase com noventa anos a enfiar a fatura no cu da agulha Fatura qual Fatura Não pedi fatura,
E vejo a avó silvina quase com noventa anos a enfiar a linha no cu da agulha e sem óculos,
O cardápio se faz favor Cardápio segreda-me a enfermeira Sim Cardápio Não sabe o que é?

(texto de ficção)

84,1 x 59,4 – Francisco Luís Fontinha

Os teus lábios de amanhecer

Aos teus lábios de amanhecer
Peço um desejo
Que a manhã depois de crescer
Na minha mão acorde um beijo,

Aos teus lábios de amanhecer
Um abraço se alicerça ao teu olhar
Um sorriso vai nascer
Nas gaivotas que brincam no mar,

E voam sem parar
E voam nos desejos da tempestade
As gaivotas que brincam no mar,

Que nos teus lábios de amanhecer
Cesse a saudade
E todos os dias de sofrer…

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sou feliz Mãe

Poiso a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraça-se-me,
- Volto já E nunca mais regressou desde a noite que saiu apressadamente para comprar cigarros,
Abraça-se-me e dizem que dorme na rua de uma cidade de um qualquer país inventado debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Volto já E nunca mais o vi e nunca mais senti sobre o meu braço a mão trémula que quando consumia cigarros junto ao rio evaporava-se e abraçava-se-me como aquele sorriso que acordava da tela deserta na noite que apressadamente saiu para comprar cigarros,
Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria,
- Sou feliz Mãe Pensava eu antes de adormecer e claro que tudo mentira,
Paralelepípedos de miséria E tudo mentira Eu mentira As ruas da cidade Mentira Os cigarros mentira,
- Sou feliz Mãe,
Tudo mentira exceto as noites debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Sou feliz Mãe Os cigarros mentira,
Desciam as estrelas embrulhadas num finíssimo manto de geada que entranhava-se-me nas dobradiças ferrugentas made in Cinha e que algumas noites depois de usadas pareciam as rodas do carro de bois do tio serafim pela calçado do outeiro,
- Amarela Raios te fodam,
E tudo mentira Exceto as noite debaixo de cartões e jornais fora de validade e os bois do velho serafim,
- Amarela Raios te fodam,
E as ruas inventadas onde dormiam homens nos paralelepípedos de miséria, e ao longe, ao longe a amarela com vinte e quatro luzinhas suspensas nos cornos e o serafim Amarela Raios te fodam,
- Miséria Raios te fodam,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, um sorriso renasceu e abraçou-se a mim, e ao longe, e ao longe o pobre do serafim sentado na eira a contar as espigas de milho antes de adormecerem,
- Caralho Faltam-me duas,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria, Poisou a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraçou-se-lhe e nunca mais voltou e dizem que caminha nos paralelepípedos de miséria embrulhado em jornais fora de validade e com vinte e quatro luzinhas nos cornos,
- Amarela Raios te fodam,
E claro que sou feliz Mãe e claro que
- Não percebi Mãe?,
E claro que comi a sopa e tenho-me agasalhado e se for necessário Como? Não mãe E se for necessário arranjo mais jornais e cartões
- Estás a mentir-me…
Arranjo mais jornais e cartões Sabe Mãe, Não percebi Mãe?, Só tenho medo que as ruas desta cidade com paralelepípedos de miséria deixem de existir,
Porque cartões e jornais fora de validade consigo eu arranjar Tenha eu assim ruas por onde caminhar, Sabe Mãe?,
- Caralho Faltam-me duas,
E o serafim cerrava as cortinas da noite, descia pausadamente o caminho até casa, entrava silenciosamente no curral para desligar as vinte e quatro luzinhas penduradas nos cornos da amarela, subia as escadas e
- A lâmpada do quarto começava a tossir e a engasgar-se até que se extinguia junto à ramada da casa do avó domingos E eu de livro na mão à espera que o tio serafim desligasse o moinho elétrico e a lâmpada voltasse a si depois de uns minutos desmaiada,
E ligava o moinho e pegava num copo de verde e cantava até adormecer.

(texto de ficção)

Os olhos do medo

Masturba-se a cidade
Dentro dos candeeiros de néon
As ruas incham nas sombras da noite
E nos orgasmos de fome
O desejo do homem vestido de mulher
Que vagueia sobre as migalhas de suor que se desprendem das árvores

(Tenho medo da noite
Medo das estrelas
Da lua
E dos rios que correm para o mar) – grita ele

O desejo do homem vestido de mulher
Que busca as minguas moedas de euro na algibeira amarrotada
E cinzenta
E deserta na confusão das luzes suspensas nos olhos do medo

A fome cresce e multiplica-se
Nas pétalas das flores escondidas dentro dos candeeiros de néon
E nos orgasmos de fome
Masturba-se a cidade

E o homem vestido de mulher sorri
Quando a garganta do medo come a noite
E os desejos das migalhas de suor
Correm nas veias travestidas de um cacilheiro
O homem sorri
E dorme nas asas cansadas do amanhecer

terça-feira, 3 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

O doutor dos parafusos

Hoje não Dói-me a cabeça,
- Hoje não Ontem não E na semana passada estavas com cãibras, Não é verdade só que hoje foi um dia cansativo muito cansativo e estou com uma tremenda dor de cabeça, e ontem,
Ontem o doutor dos parafusos de chave de fendas na mão a alinhar-me a direção e um aperto aqui outro ali e não me queixo que me dói a cabeça, mas sinto que lá dentro alguma peça desprendeu-se porque quando me viro repentinamente oiço o batimento metálico contra a fechadura dos sonhos, e o doutor dos parafusos,
- Mostra-me os pulsos francisco,
E eu mostro-lhe os pulsos e eu mostro-lhe os olhinhos Não é verdade doutor?, desde a segunda consulta que me quer ver os pulsos e desde a segunda consulta que me quer ver os olhinhos, e
- Porque na primeira consulta enclausurei-te dentro do jardim imaginário com árvores imaginárias e pássaros invisíveis,
E vamos lá ver esses pulsos e esses olhinhos o doutor dos parafusos para nós pássaros em voos curvilíneos no corredor da enfermaria onde o jardim imaginário e as árvores imaginárias e os pássaros invisíveis,
- Que têm os pássaros invisíveis francisco?,
Os olhinhos verdes castanhos vermelhos e
- E o raio que o parta que há mais de vinte e quatro horas que durmo como uma pedra ou pior Durmo com uma pedrada como nunca tinha experimentado, É dos pássaros invisíveis respondia-me o doutor dos parafusos,
E o Alex furibundo no corredor Foda-se ir a Fátima a pé…,
- E hoje juro que ia,
E as árvores imaginárias desciam pelo silêncio da noite quando o doutor dos parafusos munido de uma porção mágica
- Três gotinhas no leite e vais ver francisco,
E eu via as árvores imaginárias com os braços apoiados no parapeito da janela com grades de ferro para nós pássaros invisíveis não fugirmos para o jardim imaginário onde só o filho da puta do Alex podia passear porque sabia o segredo de coma atravessar a parede, e durante a noite pegava-me não mão e,
- Três gotinhas no leite e vais ver francisco,
E levava-me com ele e só regressávamos quando começava a clarear o dia, e hoje juro que ia, mas hoje não Dói-me a cabeça Hoje não Ontem não E na semana passada estava com cãibras, e hoje os pássaros invisíveis à nossa espera e impacientes no corredor e desde esse dia nunca mais regressamos, e só às vezes,
- Truz-truz truz, O doutor dos parafusos Sim faça favor E respondo-lhe que é para apertar os parafusos E claro a conversa de sempre O jardim imaginário Os pássaros invisíveis e outra coisa qualquer imaginária que me esqueci
Talvez o Alex a atravessar a parede da enfermaria, não me queixo que me dói a cabeça, mas sinto que lá dentro alguma peça desprendeu-se porque quando me viro repentinamente oiço o batimento metálico contra a fechadura dos sonhos, e o doutor dos parafusos,
E claro a conversa de sempre Mostra-me os pulsos e os olhinhos, e o Alex a atravessar a parede da enfermaria…
Mas sinto que lá dentro alguma peça desprendeu-se porque quando me viro repentinamente oiço o batimento metálico contra a fechadura dos sonhos, e o doutor dos parafusos,
Entre mim e o jardim imaginário e os pássaros invisíveis e uma outra coisa qualquer coisa imaginária…

(texto de ficção)

Palavras parvas nos meus olhos parvos

Dentro da garganta dos sonhos
Uma língua de fogo incendeia o meu corpo
E das minhas mãos desprendem-se malmequeres
E botões de rosa
E palavras desconexas que se perdem no vento
E palavras parvas nos meus olhos parvos dão vida aos poemas

Que semeio nas paredes escuras do corredor da morte
Sento-me sobre uma pilha de livros
E rezo
E esqueço-me que a fogueira consome os meus braços
E esqueço-me que na garganta dos sonhos
Um fio de luz prende-me à vida e não me deixa partir

Dentro da garganta dos sonhos
Pinto o mar na digestão da solidão
E os sonhos engolem as minhas cinzas
Engolem as minhas palavras
Engolem o mar que pintei na digestão da solidão
E rezo

Rezo que das minhas cinzas cresçam poemas
E das minhas mãos os malmequeres e os botões de rosa
Subam ao céu
E repousem junto a um buraco negro
Longe muito longe infinitamente longe
Onde as minhas palavras parvas e os meus olhos parvos

Brincam de mão dada a duas parvas retas paralelas

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012


59,4 x 84,1 – Francisco Luís Fontinha

Definitivamente não

Definitivamente não,
Acreditava eu quando olhava o céu do meu quintal e entre os ramos das mangueiras via os aviões em manobras de diversão, emagreciam e engordavam, e eu estúpido acreditava que dentro deles uma alavanca que alguém puxava e depois passavam os pássaros e eu já não acreditava em alavancas porque dentro dos pássaros só carne e ossos e músculos e gordura e porcaria e perguntava-me,
- Tudo bem francisco Dentro do avião o parvalhão puxa uma alavanca que o faz engordar ou emagrecer, e os pássaros?
Que têm os pássaros Perguntava-me o meu pai,
- Os pássaros pai Os pássaros quem os faz engordar ou a emagrecer,
Definitivamente não,
Quando junto ao porto de embarque e os barcos enormes e eu tão pequenino e perguntava-me,
- Também alavancas dentro dos barcos?,
Zarpavam em pedacinhos de nada à boleia de um rebocador e enquanto eu abria e fechava os olhinhos certamente o mesmo parvalhão que puxava a alavanca dos aviões e puxava a alavanca dos pássaros,
- Alavancas Quais alavancas?
O barco pequenino e desaparecia no horizonte,
- Pássaros com alavancas? Sorria o meu pai quando passávamos junto à estátua da Maria da fonte e no fim de tarde a ida aos coqueiros para assistir aos treinos do hóquei em patins,
E quando fui de Luanda a São Salvador de avião fartei-me de procurar pelo homem que puxava a alavanca para que os pássaros emagrecessem ou engordassem e definitivamente não, nenhuma alavanca dentro da barriga do pássaro a não ser, a não ser,
- A não ser o quê francisco?,
A não ser a cidade tão pequenina e outro parvalhão de alavanca na mão,
- Acreditava ele quando olhava o céu do quintal e entre os ramos das mangueiras via os aviões em manobras de diversão, emagreciam e engordavam,
A cidade tão pequenina e as nuvens penduradas à janela e o paquete em pedacinhos de nada agarrado à boca do rebocador,
- Eu com as mãozinhas agarradas às grades e nenhuma alavanca e nenhum homem a puxar a alavanca para que ele emagrecesse, e aos poucos alguém de alavanca na mão fazia com que Luanda ficasse tão minúscula e deixei de a ver e hoje,
E hoje recordo,
Definitivamente não,
E hoje recordo o dia em que vim e nunca mais vi Luanda porque aos poucos emagreceu e desapareceu e só água e só agua e só água,
E uma outra cidade começou a engordar quando ao longe uma ponte me acenava e anos mais tarde sentado junto ao rio via um paquete a caminhar tejo acima e um menino pendurado nas grades a acenar-me e a perguntar-me,
- É o senhor o homem das alavancas?,
Definitivamente não,
Alavancas? Miúdo tão parvalhão…
Alavancas, Alavancas.

(texto de ficção)

As árvores do sonho

Construímos manhãs
Nas árvores do sonho
Dentro dos pássaros onde habitamos
Junto ao rio emagrecido na garganta do mar

Construímos manhãs
E pintamos o pôr-do-sol no teto do desejo
E na montanha onde desenhamos flores
Brincam as tuas mãos suspensas no meu peito

Que acariciam os meus lábios
Nas árvores do sonho
O rio imaginário entra no teu corpo
E na tua boca cresce um beijo

Nas manhãs construídas
Debaixo das nuvens transparentes de algodão doce
Tu e eu olhamos a cidade que dorme
A construir manhãs na rocha dos sonhos

Acordar

Espero impaciente pelo teu acordar
E que no final da manhã
O teu lindo sorriso de odor a mar
Me abrace

E nos teus olhos
Desapareça a tempestade
E cessem todas as dores
E cesse a saudade

domingo, 1 de janeiro de 2012

À mesa do café

À mesa do café esperava por ti,
Mergulhava num livro de António Lobo Antunes e ficava lá até que via a aproximação da tua sombra e puxavas silenciosamente uma cadeira e te sentavas e me olhavas, e finalmente vinhas visitar-me e finalmente pegavas na minha mão,
À mesa do café esperava por ti e eu imaginava-te num sorriso junto ao tejo quando eu passeava distraidamente e mergulhava nas lágrimas do rio e me sentava a junto a ele a fumar cigarros e quando terminavam os cigarros desenhava o teu rosto na água, e quando terminavam os cigarros pintava os teus lábios na neblina que me ofuscava a visibilidade, e ao longe, e ao longe a ponte desaparecia em pedacinhos de silêncio, e eu ficava lá,
- E vinte anos depois ainda mergulho nos livros dele,
Via a aproximação da tua sombra e puxavas silenciosamente de uma cadeira e te sentavas e me olhavas,
- Hoje não preciso de te esperar porque hoje já vives dentro de mim, e quando terminavam os cigarros ele pegava nos meus lábios e pintava-os de azul e quando me olhava ao espelho, e quando me olhava ao espelho tinha o mar na minha boca,
Gosto de ti diz-me ela antes de adormecer, gosto de ti antes de eu mergulhar nos livros dele e puxar de uma cadeira silenciosamente à mesa do café esperava por ti e ficava lá e te sentavas e me olhavas e oiço a tua voz Gosto de ti,
- E vinte anos depois ainda mergulho nos livros dele,
E ao longe a ponte desaparecia em pedacinhos de silêncio, e eu ficava lá a ver o mar pintado nos teus lábios e eu hoje sentado à mesa do café a mergulhar num livro dele e espero que acordes amanhã e pegues na minha mão e que o mar que pintei nos teus lábios esteja lá,
- Claro que sim seu parvalhão Amanhã vou acordar e o mar nos meus lábios à tua espera na mesa do café, e puxo silenciosamente uma cadeira e me sento e te olho, e finalmente vou visitar-te e finalmente pegas na minha mão e o mar que pintaste nos meus lábios abraçar-se-á à tua boca,
Gosto de ti antes de adormecer quando oiço a voz dela,
- Gosto de ti,
Quando oiço a voz dela e eu com um livro dele na mão espero que ela amanhã acorde e abra os olhos e me olhe e,
- Gosto muito de ti,
E nos lábios dela continue lá o mar que pintei,
- Claro que sim seu…
E ela amanhã acorde e pegue na minha mão.

(texto de ficção)

Os teus olhos de amanhecer

Dos teus lábios
Um finíssimo fio de espuma
Se mistura no mar
Dos teus lábios
Em desejo
Uma barcaça não desiste de navegar

E dos teus sonhos nos teus lábios
O sorriso de recomeçar
Em cada manhã
A cada luar

Dos teus lábios
Oiço as palavras engasgadas na areia que poisa no teu corpo
E se dilata nas mãos de um jardim com flores
E abelhas
E muitas cores
E no desejo de quando acordares

As flores
As abelhas
E as cores

Iluminem os teus olhos de amanhecer