segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Menina de porcelana

Sábado, e uma casa abandonada, escura, fria, sábia e doce, sábado, ela vem buscar-me, pegar-me-ás sem que ele perceba o que é o amor, sem que tu percebas
A fina escória neblina que o soalho de vidro provoca em nós, mulheres, esposas sem marido e filhas de um Deus esquisito, às vezes, Ateu, outras vezes, malfadado, hirto, sujo, eu, quando te encontro em frente à rua onde vive a tua mãe, e tu
E eu sem que tu percebas as fotografias a preto e branco que dormem no álbum do teu pai, fotografias antigas, dos tempos de
E tu
Luanda, as gaivotas atravessavam a Baía e deitavam-se nas mãos dos mabecos enfurecidos pela escuridão das palavras mortas, murmuradas por cadáveres estonteantes, embriagados, às vezes, outras vezes
E tu
Desgovernada sem saber o que fazer, corrias pela cidade, batias às portas, e ninguém, ninguém dobre o zinco da noite a abraçar-te, ninguém para ti
Deita-te sobre mim, meu amor, e deitavam-se as nuvens sobre as mangueiras que os pássaros deixavam ficar nos quintais abandonados, deita-te sobre mim
Meu amor...
Ninguém para ti, ninguém para mim, de candeeiro em candeeiro, uma corda de aço prendia um petroleiro, homens maus com um chicote
Não me bata por favor, gritavas quando ele acendias os cigarros nas janelas da lareira, e que a morte nos trazia todas as noites nos finos cobertores que o inverno construía, e nós
Não sabíamos o que era o Inverno,
Imaginavas a neve como sendo areia dentro de uma caixa de sapatos, pesadíssimas botas mordiam-te os pés lilases de pétala amordaçada, e não sorrias, escondias-te no sótão, e choravas, e gritavas
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
Adormecias agarrada a uma boneca de trapos que nasceu e cresceu no primeiro andar com janelas e vidros envelhecidos, alguns deles em perfeita decomposição, o cheiro imundo a vidro putrefacto, em pedaços, suspensos nos peitoris de madeira apodrecida, e suja
Repetição
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
E suja
Minha amordaçada menina de porcelana,
Sábado,
E tu
Luanda, as gaivotas atravessavam a Baía e deitavam-se nas mãos dos mabecos enfurecidos pela escuridão das palavras mortas, murmuradas por cadáveres estonteantes, embriagados, às vezes, outras vezes, vezes a mais, aparecias em casa numa lástima, perdias as calças, perdias as mãos, perdias os braços, regressavas, entravas, não falavas, e deitavam-se elas sobre os muitos lençóis que o cacimbo deixava ficar pelas ruas, outras vezes, às vezes, um carro zumbia, rosnava entre cães e mabecos e cavalos que tinham fugido de um carrossel estacionado junto aos Coqueiros, mostravas-me os treinos de hóquei em patins, inserias a moeda na ranhura
E os barcos começam em círculos longos voos sobre os telhados poeirentos que pertenciam às nádegas húmidas do ciume, e as fotografias do teu pai
A Preto e branco, mortas, esquecidas no fundo de um caixote de madeira, em viés um seta pintada apressadamente e letras que mal se percebia
CUIDADO PARA CIMA,
E um tipo com os dentes virados para o céu, e esperava, CUIDADO PARA CIMA
A Preto e branco, mortas, esquecidas no fundo de um caixote de madeira, em viés um seta pintada apressadamente e letras que mal se percebia que sábado, e uma casa abandonada, escura, fria, sábia e doce, sábado, ela vem buscar-me, pegar-me-ás sem que ele perceba o que é o amor, sem que tu percebas, a fina escória neblina que o soalho de vidro provoca em nós, mulheres, esposas sem marido e filhas de um Deus esquisito, às vezes, Ateu, outras vezes, malfadado, hirto, sujo, eu, quando te encontro em frente à rua onde vive a tua mãe, e tu, e eu sem que tu percebas as fotografias a preto e branco que dormem no álbum do teu pai, fotografias antigas, dos tempos de
CUIDADO PARA CIMA,
Repetição
Não gosto desta terra maldita, maldita extinta imunda, e
E suja
Minha amordaçada menina de porcelana,
Sábado,
E tu
Luanda,
E eu
Não Luanda.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Rua B

O trânsito infernal, o (pára arranca) leva-me a imaginar uma rua sem saída, e muitas pessoas a caminharem em direcção, não sei, e não mo perguntes
Em direcção ao vazio,
Ao nada, ando uns míseros milímetros, agacho-me, sinto o próprio vazio da rua sem saída a coexistir dentro de mim, ruas, pessoas
Em direcção ao vazio, nuas
Muitas pessoas,
Em direcção ao vazio, os edifícios agachados também, tal como eu, e as árvores voam, fogem para longe, levam as folhas e as flores, muitas pessoas
Vazio,
Que transportam pele e osso, quilogramas de lixo cinzento, cigarros made in China, com sabor a Primavera, procura nos bolsos, não as encontra, as chaves, de casa, do carro, procuro-os nos bolsos
Os edifícios, não os encontro, os carros, as casas, procura nos bolsos as pessoas, fugiram, deixaram de pertencer à rua B do número trinta e três, outra vez, repita comigo
Trinta e três, rua B, quito esquerdo, e ela repetia, Trinta e três, rua B, quito esquerdo, abria as asas e começava a voar sobre a cidade, deixei de a ver, deixei de a ouvir
Perguntas-me se à cidade ou a ela, à rua B
E eu simplesmente tinha saudades, da rua B, dos alicerces, as pessoas, os pássaros, o trânsito infernal, o (pára arranca) leva-me a imaginar uma rua sem saída, e muitas pessoas a caminharem em direcção, não sei, e não mo perguntes, hoje, não, amanhã talvez, saio de casa, sais de casa, encontras no bolso
As chaves do carro,
Os cigarros, as chaves de casa, os edifícios, não os encontro, os carros, as casas, procura nos bolsos as pessoas, fugiram, deixaram de pertencer à rua B, os ciganos em exames à volta de uma fogueira, três ou quatro tendas, alguns animais, cães e burros, e uma leve e fina cortina de vento, silêncio, grito-te
Não te oiço, respondes-me, trinta e três, como? Chegas a casa, e desapareces como desapareceram todas as pratas e porcelanas que tínhamos na sala de jantar, entras, não te percebo
As chaves do carro,
Não percebes, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, não temos carro, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, que nunca tivemos
Um carro,
Não te percebo, que nunca tivemos
Um burro e uma carroça,
Não te percebo, que nunca tivemos
Nada, casa, que nunca vivemos
Na rua B? Não percebes, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, não temos carro, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, que nunca tivemos
Nada
Chegas a casa, não te conheço, perguntas-me se o jantar já está pronto, olho-te, olho-te e não te percebo
Porquê se não tenho, Porquê se nunca ti, Porquê marido,
Um carro,
Um burro e uma carroça,
Assistíamos à dança dos ciganos à volta da fogueira, lembras-te, perguntavas-me e eu juro que não, na rua B deve ser engano, não conheço, não sei
Não te oiço, respondes-me, trinta e três, como? Chegas a casa, e desapareces como desapareceram todas as pratas e porcelanas que tínhamos na sala de jantar, entras, não te percebo
As chaves do carro,
Não percebes, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, não temos carro, não te percebo dizes-me e eu não me esqueço, que nunca tivemos
Um carro,
Não te percebo, que nunca tivemos
Um burro e uma carroça,
Não te percebo, que nunca tivemos
Nada, casa, que nunca vivemos na rua B deve ser engano, não conheço, não sei, chegas a casa, entras em cada compartimento de luz, não me encontras, finjo-me invisível, e tu perguntas-me
Como se faz Rafael?
Não te percebo, que nunca tivemos
Um burro e uma carroça,
Que eu me lembre, apenas uma rua sem saída, e muitas pessoas a caminharem em direcção, não sei, e não mo perguntes
Em direcção ao vazio.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

blogue Cachimbo de Água em destaque


(Inventavas pássaros)
blogue Cachimbo de Água em destaque
Sapo Angola

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Absorviam-te as palavras

Insisto, desistes facilmente como se fosses a chuva miudinha dos finais de tarde em Belém, e nunca percebi, senti, sem ti, perceber

Porque me perseguias entre sombras e canaviais que escondem a cidade, porque me perseguias, sem perceber, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, sentavas-te e acorrentavas-te aos candeeiros encardidos, velhos, ontem, hoje não

Perceber, sem ti, sentir-te dentro dos meus olhos cabisbaixos, amorfos, fabricando euros clandestinos num barracão da Madragoa, e entortavas-te com a vestimenta disfarçada de gaja Espanhola, made in China, perceber

Hoje não, desculpa-me,

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Hoje não, desculpa-me,

Sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

Sentavas-te, sem ti, senti, sentavas-te a olhar o mar, e esperavas, pelo regresso das palmeiras, algumas regressavam, outras morriam, e outras

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti

Libertavam-se das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas tuas coxas de linho, o cortinado tremia, sentavas-te

Sentia-te,

Sentavas-te nos rochedos que as nádegas, e entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti a paixão dos homens que se suicidavam dentro dos cubos de vidro, e sentavas-te nos rochedos que as nádegas de manteiga desenham nos espaços vazios da areia das parais do Mussulo, caraças

Sentavas-te e sentavas-te e sentia-te

Regressavam os barcos nocturnos das viagens sem regresso, perdias-te nas caves escondidas dos porões esfomeados que a saliva do desejo traçava nas paredes murmuradas em parêntesis incompletos, pontos finais sem fim, continuação da história, da mulher de saltos altos e meia de vidro no palco em delírios e sentavas-te

No caixão revestido de sorgo, amêndoas e chocolates fora de validade, acreditavas nas esplanadas junto ao rio, abrias as pernas, fincavas os dentes num pedaço de pano, sujo, imundo, húmidas as tuas mãos, e

Absorviam-te as palavras, desculpa-me, sentavas-te, sentavas-te, senti, sem ti, absorviam-te as palavras como se fosses um poema de amor, como se fosse uma rosa, uma nuvem, pássaro, ou uma árvores inventada pelas mãos de um apaixonado motorista dos machimbombos, com asas de de vodka, embebias os lençóis em sangue menstrual, limpidamente à janela de onde se observava a pastelaria, e quem diria

E entortavas-te nos lençóis embebidos em vodka, senti, sem ti,

E quem diria, que eu, um dia, acabaria como um lençol mutuário, sem testamento, herdeiros, e quem diria, que eu, um dia, sem ti e sinto, hoje, não propriamente hoje, ontem talvez, às vezes esqueço-me que já morri, defecado dentro dos orifícios das lilases masmorras de granito, os sexos murchos como as palmeiras da Baía de Luanda, quando o vento, as levava, e eu

E eu

Um vulcão,

E eu

Sentia-te,

E eu

Libertava-me das manhas de cacimbo, e o capim mergulhava nas coxas de linho construída por uma noite de insónia, e o cortinado tremia, e sentavas-te

Sentia-te,

Nos meus silêncios do inverno à lareira dos sonhos,

E eu

Não acreditei.

(Texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Quatro segundos de voz


Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

a melancolia
quando acordo não percebendo que acordei
e tropeço nas areias húmidas das rochas incendiárias
e não sei que o dia compreendia
a enormíssima porcaria
de fato e gravata
que é o doutorado diabo
em silêncios mergulhado
torturado por uma velha de mãos efémeras em cio
com um sorriso na veia
maldita mulher que o vento semeia
nas coxas exaustas das tempestades de areia,

Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

e eu sabia
que um dia
me fodia
acreditando nas palavras desertas
hirtas e difusas
e eu sabia
que um dia
um velho dia
ele vinha
me pegava
e me levava
até aos confins olhos das amêndoas que jazem nas cinzentas lajes do oceano,

Roubo às palavras ditas
palavras escritas,

e sento-me sobre as nádegas do amor
sou feliz
talvez
um pouco
muitas vezes dentro de um prato de sopa
a tua simples madrugada
em gaivotas voadoras
loucas
que a tua boca de papel amarrotado
dissimila
e deita-se nas celestes luzes das cidades de vidro
a dita palavra escrita dita roubada em quatro segundos de voz,

P.S.
Roubo às palavras ditas
palavras escritas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Cachimbo de Água em destaque


(Que era pintor e usava sandálias de couro)

Cachimbo de Água em destaque
Sapo Angola


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Que era pintor e usava sandálias de couro

Sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, onde, desde que me recordo, vivi, cresci às mãos de uma religiosa meio louca, surda, que tinha alguns tiques, um deles, enquanto falava comigo, metia as mãos nos bolsos do meu hábito encarnado com listras azuis, e quando me apercebia, já alguns do objectos que eu transportava jaziam nas mãos dela,

Desculpa-me minha filha, mas faço-o sem perceber,

Usava um lenço de papel pardo ao pescoço, fumava às escondidas, e tenho uma leve sensação que gostava de mim, não o gostar como quem gosta de uma filha, gostava no outro sentido, quando pela noite, descia a Almirante Reis e numa das pensões de hora e meia, entrava, despia-se, e no silêncio da noite convulsivamente, construía barcos de madeira prensada que posteriormente um velho marinheiro utilizava quando ia em sonhos até alto mar e cismava que tinha pescado uma menina loira com olhos verdes,

Tinha um amante o teu pai,

Fui literalmente pescada por um marinheiro em alto mar, numa noite de tempestade e no intervalo de puxarem as redes e de ele atafulhar o cachimbo de prata com ópio, e enquanto acendia, e enquanto não acendia, e apagava-se, e novamente acendia, o adjunto do mestre foi içando as redes, até que

Comandante, comandante, temos um grave problema, e enquanto ouvia o adjunto pensei logo que tivesse sido o Francisco que caísse à água, pois quase sempre andava embriagado, gritei, O que foi adjunto?

Um amante?

Temos na rede uma menina loira com olhos verdes, pensei, Está ele também bêbado, maldito vinho..., e olhei

E não queria acreditar, pensei que fosse do ópio, mas percebi que não, era mesmo uma linda menina, raios, e agora? Que vão dizer os meus amigos? Que fosse do ópio, não, era mesmo uma linda

Tinha um amante o meu pai?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Lhe perguntei o significado do amor, sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, a irmã Margarida, pede um desejo

E eu sem hesitar, abraçar o meu pai, tocar-lhe no cabelo indefeso que a própria idade lhe desenhou na cabeça, pegar-lhe na mão, sentir o cheiro

Do cachimbo do teu pai adoptivo?

Que era pintor e usava sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras transversais, e lia Proust, e nunca

Tinha um amante o meu pai?

E nunca me desejou

Até que o mar me levou.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Às quatro paredes invisíveis da abelha inseminada


A casa louca às quatro paredes invisíveis
que o deserto africano constrói
sobre o cansaço adormecer de uma árvore voadora
e a triste saudade que uma simples folha de papel tece
na boca inocente do morcego
há noites que comem as outras noites incompletas pela imensidão arte do esconderijo
sôfrego
sofrido mendigo do prazer amigo

há ainda noites
separadas
amantes
dramatizadas
viúvas
casadas

doentes
sofridas marés de solidão
que os barcos do desejo rompem
esmagam
nas planícies faces xistosas da pele de uma abelha
à procura desenfreadamente pelo regresso das vozes de granito

não sei
eu
a casa de ramos e esterco empilhados sobre as camas do abismo
janelas sem guardião
portas de entrada sós
uma mulher com asas
não sei
eu

na fogueira mãe abraços
em brasas de sémen do tecto do palheiro
as teias de aranha cinzentas empobrecidas pelo fumo do cachimbo de prata
lata
que a noite comida pela noite anterior
deixou ficar
abandonada
sobre a mesa de quatro patas
o amigo o cão amigo de areia
à espera do mar que incendeia
que semeia os penhascos incensos do amor proibido
a lata inseminada pela cerveja fumegante dos espíritos às insónias molduras

quatro simples fotografias
eu
ele
ela
e a manhã em que me despedi de Luanda...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Marinheiro de Luz


Achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

achas-te superior
rainha das coisas boas
montanha de luz
achas-te uma flor
uma simples flor
com pernas de cansaço
e braços
aos abraços
oiço o balançar da porta de entrada
truz truz truz
ninguém será certamente para me dar nada
nem uma simples corda de aço,

um prato com sopa de legumes encarnados
vinho do porto velho como os pássaros com asas de mar
(achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente)
e às vezes
multiplicam-se as manhãs de inverno
cresce o inferno
maré de marinheiro
quando eu sentado no barbeiro
penso solitariamente nas nuvens de barbear,

sinto-te em espuma no meu rosto envelhecido
e das saudades
as pequenas saudades
correr amar correr livremente
e voar
e amar
voar até cair nos teus braços
abraços
uma corda de aço
do tão construído cansaço
a espuma de ti mergulhada no meu simples desenho da alvorada
e tão triste e tão só tudo aquilo que foi esquecido,

achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

mas continuarás a ser uma resma de palavras
sem nexo
moribundas quando a mergulhada canção de amor
não é uma flor
é uma canção
que sofre
que dói
e mói
as pedras finas da calçada dos amores proibidos
e dói
mói
a doçura tristeza do desejo.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

As cinco primeiras insónias da madrugada

Suicidou-se nos meus braços,

Quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais ela podia desejar?

Saía de casa por volta das 04:30 horas, ainda não tinha acordado o dia, levitava-se pela casa em bicos de pés, beijava na face cada um dos filhos, rogava uma praga ao marido embriagado e pensava nas primeiras cinco insónias do amante, pegava-lhe na fotografia ao de leve, e beijava-o docemente

Nos meus braços,

O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Nos meus braços,

Fazia a contabilidade da casa, organizava os jantares de família, digamos que ele era a governanta lá do sítio, cabisbaixo, de asas poisadas sobre a lareira dos sonhos, fazia contas, e quando chegava à prova dos nove

Foda-se a conta está errada,

Nos meus braços, os fósforos que a morte come quando de deita o dia, chega a casa cansado, desinteressadamente infeliz, faltava-lhe tudo, os rebuçados, as guloseimas, as amêndoas de chocolate e o caramelo Espanhóis que o contrabandista do zarolho oferecia todos os anos pelo Natal, felizmente já faleceu, e vimos-nos livres dos caramelos

O meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu pai acordava todas as manhãs embrulhado em vómitos e crateras de sulfato de amónio nos lábios, acendia o cigarro da desgraça, o cão impaciente, o pássaro fodido, e a minha triste mãe de lágrimas nos olhos a escrever as queixas nas faces rosadas do amante, faltava-lhe qualquer coisa

Nos meus braços, suicidou-se ao entardecer,

E o meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, o cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro não resistiu aos salpicos das garras do gato do vizinho que aproveitando a janela da cozinha entreaberta, zás..., fodeu-lhe o pescoço

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu

Foda-se a conta está errada,

Docemente a beijava, sem perceber que a casa ardia na fogueira da paixão, os meus queridos irmãos

Suicidou-se nos nossos braços,

Eu

Caminhava com quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais posso desejar?

A morte,

O gato constrói um arroto que todo o prédio presenciou sonoramente, na Antena 3 desenhava-se o Planeta 3 nas falsas palavras dos livros dele, os uivos, os gemidos, os milagres concedidos à minha querida mãe, e que hoje partilha uma assoalhada bem lá no alto

A morte de um orgasmo,

Bem lá no alto, No céu?

Os meus três irmãos os estúpidos de sempre, engasgados nas asneiras da literatura vendida no vão de escada, subia-se, subia-se

No sexto andar seus parvalhões,

Subia-se até que chegávamos ao céu,

Eu, três irmãos, a minha querida mãe melancólica, o meu paizinho sempre embriagado, o amante da minha mãe constantemente à procura das cinco primeiras insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais eu podia desejar?

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Suicidou-se nos meus braços sem perceber que eu era um cadáver ensonado que de jardim em jardim, que de embarcação em embarcação, que de autocarro em autocarro (riscar autocarro porque estão em greve), que de papoila em papoila

Bem lá no alto, No céu?

A morte de um orgasmo depois do suicídio das lâmpadas de néon que todos eles utilizam no Natal,

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Sim, no céu, os dias deixaram de ser dias, os dias, pequeníssimas folhas de papel voando sobre um ninho de cucos...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Festas Felizes

O espelho curvilíneo da melancolia

Todas as noites me afundo num oceano de saudade, mergulho, indefeso, procuro a sombra marítima que brinca dentro do meu peito, sem jeito para alguma coisa, todas as noites me afundo, de saudade, na saudade, viver sem saber o que é o medo, viver, sem saber... o que é

algum dia, qualquer dia, ouvirás as vozes que deixaram dentro da gaveta dos sonhos, as tuas mãos,

o que têm as minhas mãos pai?

as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes, outras, nem por isso, e procuras-me dentro dos pinheiros mansos da floresta das mães abandonadas, as flores, as árvores, e todos os filhos das manhãs de inverno, aqui, agora, procuras-me e eu escondo-me

o que têm pai?

olhas-me no espelho curvilíneo da melancolia absorvida pela pele esbranquiçada de um esqueleto sem sono, penso

desfaço, não desfaço, e acabo por concluir que a barba é um acessório desnecessário, o cabelo tomba no jardim com os canteiros alinhados, o tapete, a carpete, alguns dos tacos devido à humidade levantaram-se, de pé, em tesão, e às vezes, e às vezes

o que têm pai?

tropeço, linearmente vou de encontro frontalmente contra as flores de cetim junto aos cortinados de linho, hesito

o que têm pai? Penso, e às vezes

pareço um pedaço da pano com remendos e buracos, como o telhado do palheiro, telhas em perfeitas condições, e telhas

o que têm as telhas pai?

e telhas com os membros inferiores fracturados, moribundas, que deixam passar as lágrimas do céu, as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes

todas as noites me afundo num oceano,

todas pai?

todas, todas as noites.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

domingo, 23 de dezembro de 2012

Maria Feliz

Nasci numa aldeia cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus, uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu

eu continuo sem saber o que sou,

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário, regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando chegava ao quinto andar,

agora sei o meu nome,

Maria Feliz, entrava em casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD no seu interior

agora sei o meu nome,

Wordsong (AL Berto)

e ele,

ela,

tinham saudades dos tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o dedo e levava-o à boca

ela percebia que eram lágrimas com mel,

chovia dentro de casa, tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós deliciávamos-nos com os poemas

eu continuo sem saber o que sou,

ele

sisudo,

ela

levantava-se do sofá, acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até

ele

sisudo,

ela

ela percebia que eram lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,

viste o Carlos?

ele

sisudo,

ele

chato,

ele, que todos os dias se levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto andar,

sisudo,

agora sei o meu nome, agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase

morri,

ela

viste o Carlos?

chato, sisudo, as árvores que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as minhas irmãs

não gostam de mim, sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas

o Carlos é um chato, e sisudo, e

as ruas deixavam de pertencerem-me, e

ela

viste o Carlos?

e elas sempre souberam que nunca existiu nenhum Carlos, e elas

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado

numa rua de Cais do Sodré, e quase

morri.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sábado, 22 de dezembro de 2012

Drageias de pólen


Quatro drageias de pólen embebidas em cianeto
para quatro homens de barro
mergulhados no poço da solidão
sem perceberem

eles
elas
nós

sem perceberem que o vulcão do silêncio morre lentamente
na mão malmequer do jardim abandonado
sem flores
quatro árvores de papel

um condenado
embriagado nas tuas palavras sem janelas para as rimas deixadas sobre a mesa
um prato de sopa
às cabeçadas entre as migalhas de pão
e a cozida cebola
que cintilam pedaços de pálpebras e corações grelhados com molho de paixão

amanhã vai estar frio
tem cuidado...
amanhã vai chover
não te molhes...
e ninguém
e ninguém me avisa quando vem a fome
e me diz
queres um prato com sopa?

uma folha de couve?
não senhor
não oiço
não bebo
não fumo
fodo às vezes quando calha

e quando calha
sou uma drageia de pólen embebida em cianeto
deitada sobre a mesa do pequeno-almoço
à espera
pacientemente
que um louco de barro me coma
e morra
e me leve para a montanha das quatro portas invisíveis.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A caravela mais linda do oceano

Sou filha do vento e nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na praia dos sonhos, sou filha

da vida quando construída, destruíste-me os ossos e fizeste deles sumo de laranja com rissóis de camarão, a tarde estava límpida, linda, brilhante, ausente a tua melancolia paixão pelos livros, da vida, e eu

sou uma filha da puta, destruíste-me cansada manhã, à luta, à carga que os costados ainda aguentam, sou burra, de velas arregaçadas até aos ombros, levanta-se o mastro luzidio da paixão, e ela

a caravela mais linda do oceano,

entre curvas e sombras,

e ela às marradas contra a porta de entrada, cinco da manhã, porta encerrada, fui despedida, lia-se na tabuleta míope

por razões de segurança é proibido sonhar,

filhos da puta, pensava eu, miúda da vida quando construída, destruíste-me os ossos e fizeste deles, e fizeste de mim

uma mula sem asas,

e fizeste de mim

uma caravela sem velas,

e fizeste de mim

uma puta sem pernas, sem nome, sem jazigo, caixão, cave, ou noite embrião, uma puta solteira, filha do vento, e nasci, e nasci num final de tarde, junto ao Tejo, numa esplanada com cadeiras, uma esplanada com mesas, plastificadas

os ossos, as pernas, as asas, as casas, eu

uma puta sem alicerces, segurança social, uma

casa sem janelas, um rio sem barcos, ponte, um jardim nu, moribundo, húmido entre as sílabas assassinas da primeira comunhão, que raiva, ódio, não gostava de gravatas, sapatos pontiagudos, e asas, e fatos de pano barato,

o cigano

estás bonito miúdo,

e ela,

sou filha da chuva, sou filha do vento,desculpem-me, ajudem-me, lancem todas as cordas para o mar, e numa fúria de raiva

salvem-me esta puta filha do vento,

uma caravela sem vela, uma puta sem pernas, sem braços, sem cabeça, uma árvore miúda, à lareira, feliz natal ouve ela

salvem-me,

porquê,

o cigano,

que giro, está lindooo,

e eu era lindo quando vestido de pedaços de xisto com laminados de madeira, o serrote em cuecas fugindo corredor fora, o barco enfeitiçado mergulhava nos olhos verdes da puta encarnada manhã de sábado, saí de casa, travesti-me de homem livre, como o vento, pai da puta, que no final de tarde, ouvia os roncos magistrais das bocas ocas e loucas que

o cigano,

que a maré provoca nos corpos quentes,

caliente meu corpo de cetim doirado,

o cigano,

lindooo,

eu sei, eu sei quando me olhava ao espelho,

as vaidades, as paredes guiadas pelas raízes dos finais de Outono, ouviam-se as transpirações das desejosas camas de vinte e cinco euros, à janela, há janela, uma fotografia com um miúdo nos braços do cigano

lindooo,

e eu respondia-lhe que os sapatos pontiagudos me magoavam, e ele

quando começares a voares passa-te, e deixam de doer,

lindooo,

que a maré provoca nos corpos quentes,

caliente meu corpo de cetim doirado,

o cigano,

lindooo,

e gemias, e atravessavas as paredes de porão em porão, descias as escadas até ao ínfimo milímetro de poço, e dizias-me

sou filha do vento e nasci num final de tarde, tenho cabelo loiro como o oiro, tenho asas como as gaivotas, em revolta, tenho olhos verdes com luzinhas encarnadas, como as madrugadas, depois de uma longínqua caminha na praia dos sonhos, sou filha

uma puta sem alicerces, segurança social, uma

casa sem janelas,

sou filha do vento, sou filha da chuva, sem braços, sem pernas, sem asas, sou

lindooo,

e nunca mais vi o cigano de camisola azul.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Esquecimento


Sinto-me
sentando-me desesperadamente só
sinto-me não ouvindo o silêncio dos rochedos submersos nas tuas lágrimas
de primavera adormecida
sentando-me
sobre a tua sombra
sinto-me
desesperadamente só
como um pássaro esquecido na copa de uma árvore invisível
sobre a lua
a tua sombra
sinto-me sentando-me desesperadamente só

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Havia música nas tuas mãos de gesso


Cortaste-me a cabeça oca como se eu fosse
(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)
se eu fosse um comboio sem braços
com muitas poucas pernas de aço
acendias a luz e a noite desaparecia do cais das miseras galinhas chocas
enfadadas pelos atropelos das palavras
parvas
que a marmelada esconde na tigela doirada

cansavas-te curvada na roldana dos dias
quando das noites infernais
com os supositórios de vidro
à espreita agachados os uivos tristes da alvorada
ardiam os jornais
ardiam os orifícios curvilíneos das cancelas do palheiro
havia música nas tuas mãos de gesso
e brincavam

(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)
será uma ela?
um ele?
coitado
coitada
não me interessam as tranças verdes da espuma que o mar saliva
contra os rochedos da paixão proibida
tristemente eu em pequeníssimas cabeçadas à areia ardida

perdida
tu
eu
perdido
sem tranças
com tranças à janela do vento
sinto
quando me sento

o quê?
Como
porquê?
assim não dá
(quem será a menina de tranças suspensa na prateleira dos sonhos...)
não sei talvez um dia
as asas das gaivotas sejas alegres
como a minha tristemente cabeça oca

(se eu fosse um comboio sem braços
com muitas poucas pernas de aço
acendias a luz e a noite desaparecia do cais das miseras galinhas chocas)

o galinheiro alimentava-se das tuas palavras
doces lábios do doirado orgasmo da tigela louca
descia a ti de ti
a marmelada macia que
cansavas-te curvada na roldana dos dias
quando das noites infernais
com os supositórios de vidro
a janela do teu ciúme abre-se aos beijos dos papagaios de papel.

(poema não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

P.S.
(cansavas-te curvada na roldana dos dias
quando das noites infernais
com os supositórios de vidro)

As sombras abstractas que a morte inventa

Obviamente não foi embora, e três dias depois, quase noite, encerrou-se dentro de uma caixa de vidro, puxou o cortinado, acendeu o cigarro, e sem hesitar, entre coices e telas em acrílico que tinha acabado de destruir e deitado fora, finou-se, morreu, e só teve tempo de cruzar os braços em abraços, e

sem hesitar,

desapareceu entre as sombras abstractas que a morte inventa no tecto das casas com sótão, escadas em madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

sem hesitar,

galos de crista encarnada, os cornos do peru, as hastes mestras das cabras, as ovelhas em gemidos, e logo temos queijo fresco e legumes, e sandálias de couro com calções de chita, e sem hesitar

obviamente não foi embora, eu

sem hesitar,

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos

sem hesitar,

eu

sem hesitar,

desapareci entre as sombras abstractas que a morte inventa, e poucos ou nenhuns pássaros sobre o meu cadáver acetinado, as unhas de gel que a menina do rés-do-chão desenhou nas minhas mãos por vinte aéreos, poucos

eu

sem hesitar,

queria ser como tu, terça-feira disseste-me que não, e agora dizes-me que sim, que há pássaros no quintal à minha espera, e que depois de se extinguirem todas as lâmpadas das mesas de vodka, tu puxas de um cigarro, acendes o cortinado, e em coices desapareces nas telas em acrílico que brincavam na torre de controle do aeroporto da Chã, a pista longínqua, o último grito da aviação comercial, o pássaro Galileu em poucas palavras faz-se à pista, e há pista senhores excelentíssimos passageiros, há pista, os carrinhos de choque

eu

sem hesitar,

aos saltos e pulos e voos pegajosos e nojentos para não acordar a vizinhança pela manhã quando era domingo, e tu, hoje, terça-feira disseste-me que não, e agora vejo-te aos círculos na cama com lençóis de mar, há pista, poisas os pezinhos sobre a almofada, abres em noite de estrelas as asas dos desejos nocturnos, rolas silenciosamente pela pista, há pista, há pista senhores excelentíssimos senhores, à pista encostas as mamas e adquires estabilidade, da torre dizem-te

sem hesitar menina, vento a dez nós, sem hesitar, endireitar o nariz e os lábios, e não esqueça o púbis cansado e aerodinâmico das canções de Natal,

vens bem, pensava eu, enquanto te observava a percorrer a cama pela manhã, vens bem, e aterravas nos meus frágeis braços de alumínio,

obrigado senhores excelentíssimos passageiros,

aos seus destinos,

sem hesitar,

caminhava pelas ruas, puxava do cortinado e acendia o cigarro, sentava-me sobre os fardos de palha que todas as manhãs acordavam à porta do tio Joaquim, há porta, janelas, há janelas nesta casa travestida de sótão?

eu

sem hesitar,

mentia-te, e dizia-te que a pocilga onde vivíamos era um sótão com escadas de madeira, e janelas sobre as outras casas, também elas, em madeira, e luzes fanadas a outras casas, a água desviada silenciosamente da casa do vizinho, e com duas galinhas, e com alguns coelhos, e poucos

sem hesitar,

porcos de crista encarnada, galos com cornos e perus com asas de papel e hélices em fibra de vidro, e poucos,

que tu acreditavas.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Blogue Cachimbo de Água em destaque


(Os lençóis encarnados do Natal)
Blogue Cachimbo de Água em destaque
Sapo Angola


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Gajas de incenso


(a factura: é em seu nome ou em nome do burro?)

Não esqueço
sábado à noite vou entrar em ti
escrever nas tuas entranhas vísceras de primavera
o silêncio
com pingos de chuva
não esqueço
escrever
e as gajas de incenso

mergulhadas no papiro húmido da manhã sem acordarem
vivendo viver o sofrimento amor
não amando
amar
escrever
nas gajas de incenso
as palavras de encantar
que os barcos de sábado à noite

encalham na areia fina dos testículos
que dos tectos descem
os minguados tropeços de saliva
há na boca dele
ela entre parêntesis
abraçada ao ponto final
travessão
vírgula repetição paragem cardíaca ao pequeno-almoço

vírgula
ponto
paragrafo ordinário na tua mão não esquecendo
o calendário
vírgula
ponto final obrigado pela vossa presença
amanhã será outro dia

não esqueço sábado à noite vou entrar em ti
repartir-te em pedacinhos
palavra por palavra
letra por letra
sílaba por sílaba
não esqueço
sábado
quando as fotografias acordarem e dentro de ti eu

absorto
voando nas tuas vísceras entranhas cavidades
de primavera
a primeira classe das florestas virgens
absoluto em zero complexo tu eu nós os três pássaros da miséria
absorto
a primeira música no primeiro poema do primeiro desgosto de amor
não vieste desististe partiste dentro do oceano tua solidão

sábado
esperarei por ti
debaixo da ponte
trago os cigarros a corda de nylon e uma gaivota de esperma
e sei que nas tuas coxas
sábado
os cigarros
míseros sofrimentos que a noite constrói em folhas de papel...

(poema não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Os lençóis encarnados do Natal

Não sabia que te incomodavam as teias de aranha que embrulham alguns dos livros que sepultei na cave, velhos, fora de tempo, moribundos como as pessoas da minha idade, não sabia, desculpa, que te incomodavam

dias depois de mim, descias as escadas e sentavas-te sobre as páginas cansadas e poeirentas da velhíssima encadernação, algumas palavras tuas, dias depois, te incomodavam os inchaços invisíveis que das tuas torrentes mãos alicerçavam as ruas circunflexas que a cidade engole, um copo de cerveja, vodka, qualquer coisa por favor senão morro, morro, como eles, e enterram-me na cave, como eles,

te incomodavam as minhas frágeis carícias, te incomodavam as aventuras do poderosíssimo Pai Natal, de chaminé em chaminé, e finta algumas das clarabóias para não incomodar

que te incomodavam,

os amantes sobre os lençóis encarnados do Natal, que eu, que tu

detesto,

que eu

detesto,

desculpa, não sabia, que te incomodavam as minhas mãos de sabão, desculpa, não sabia, que te incomodavam as minhas orelhas pontiagudas como aqueles sapatos de joguei janela fora, também eles, pontiagudos, e tu

não me ouves, e sentavas-te sobre a velhíssima encadernação de couro, velhíssima como os meus cabelos, cinco por cento são meus, e noventa e cinco por cento

detesto,

que eu,

detesto,

noventa e cinco por cento do fisco, dos credores, e da puta que os pariu, a elas e a eles

as baratas e as teias de aranha, não te importavas, não querias saber, e agora, agora

feliz Natal,

(o caralho)

detesto,

que eu

detesto,

e pergunto-me, e pergunto-te, tu deitavas-te em mim e enrolavas-te nos meus braços

que eu

e os restantes trezentos e sessenta e cinco dias?

detesto,

nos meus braços, não te importavas, não sabias que os sonhos são simples sombras de rochedo que o mar vomita nas noites de insónia, não dormimos, não comemos, apenas jazemos na cave, embrulhados em teias de aranha, sentavas-te sobre mim

feliz Natal,

que eu

detesto,

que tu

detesto,

dias depois de mim, descias as escadas, pegavas numa lanterna, enrolavas-te em mim e silenciosamente folheavas as minhas finíssimas páginas de puro aço, frio, distante, a cave onde eu

detesto,

adormecia com os teus beijos.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

blogue Cachimbo de Água em destaque no Sapo Angola


(Mas ele não é Ateu?)

blogue Cachimbo de Água em destaque no Sapo Angola