sábado, 26 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

O circo da vida

Habito num cubículo
Coberto de nuvens amestradas
No baloiço da vida
A trapezista saudade
E a colega solidão
E no chão preso às rochas domesticadas
Os palhaços
O ilusionista
Que de farrapos constrói avenidas
E cigarros de enrolar
E putas
E cães
E flores
Nas mãos dos palhaços
Na algibeira do ilusionista
O circo da vida
Quando a vida é um circo
E eu
E eu que sou puta
E eu que sou cão
E eu que sou flor
Saltito das mãos dos palhaços
Para a algibeira do ilusionista.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Porque me olham as mimosas

Flutua nas minhas veias o desejo de partir, e enquanto fabrico cálculos complexos no meu cérebro as gaivotas correm para o mar, os pequeníssimos moluscos que se agarram às rochas, aos poucos, desistem e deixam-se levar pela gravidade da tempestade, caiem no mar e enterram-se na água como corpos voando sobre as nuvens, mergulham e fundem-se na areia finíssima do pavimento térreo do oceano, as ondas em crista sobrepõem-se aos silêncios da noite, e um veleiro é empurrado por uma mãozinha de vento rumo à ilha que na garganta da manhã cospe pedacinhos de fogo, dos pulmões afagados pelo nevoeiro emerge a sombra da maré, e eu em passos adormecidos encosto-me ao candeeiro que treme no olhar do jardim, do outro lado da rua, do outro lado da rua a relva de algodão doce, as rosas em beijos desgovernados, as formigas carregando pesadíssimas migalhas de pão, ela dorme e eu olho-a coberta por lençóis de seda e com desenhos abstractos, respira e sonha, e do espelho do quarto o meu esqueleto desengonçado preso com finíssimos arames, o crucifixo na parede ajuda-me, deita-me a mão e alguns dos meus ossos voltam às cartilagens originais, não tenho dores, apenas sono e vontade de me deitar junto a ela, enrolar-me no nos seus lábios e olhar a janela pendurada no quarto andar,
- Porque me olham as mimosas,
E se eu abrir a janela e lançar-me em queda livre, será que o vento me leva para o mar, e as mimosas, porque me olham?
Por entre as pedras o silvado vergado pelo peso das amoras bravias, um lagarto junto à parede refresca-se no sol escaldante da tarde, na vinha um coelho que brinca com frestas de xisto e corre para a ribeira, e eu penso, aqui éramos felizes,
- O cheiro das mimosas entranha-se na minha pele macia,
E eu indeciso, acordo-a, deixo-a dormir, dou-lhe um beijo ou, ou simplesmente espero que os ponteiros do relógio se apaguem quando o sol adormecer, cruzo os braços, e recordo as tardes quando brincava na eira em Carvalhais, deitava-me no chão e olhava o milho pregado às sombras do canastro. E sonhava que um dia caminharia sobre o mar e que um dia regressaria a Luanda…
Ela acorda, encosta a língua no lábio superior, sorri, e num suspiro incandescente diz-me,
- Amor, que estranho…, sonhar com mimosas penduradas na janela.

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

A lentidão sonora dos teus beijos

A lentidão sonora dos teus beijos
Nos meus lábios de pergaminho
O teu sorriso pétalas ao vento
Voando no meu infinito como um passarinho,

A manhã sem acordar
E as minhas mãos poisadas no teu peito,
A manhã dormindo profundamente,
Ausente, sem jeito.

Os meus lábios em busca da tua mão
Que algures se perde no meu corpo cansado,
A manhã continua dormindo
E o sol… não há notícia de ter acordado…

A lentidão sonora dos teus beijos
Nos meus lábios de pergaminho
E da janela entreaberta nasce o silêncio
Acorda a manhã com soninho,

Começa a gatinhar por entre os teus seios
E na minha mão cresce uma begónia…
Meu deus… tanta luz que jorra dos teus olhos,
E eu, submerso na insónia.

A minha casa dentro do mar

O crucifixo pendurado na parede do quarto olha-me como se eu fosse um criminoso, malfeitor, impostor, olha-me como se eu fosse uma sombra pendurada na ombreira da porta virada para o mar, o meu corpo sobre a cama com suspensão das funções vitais, dois quadros olham-me e trocem o nariz à minha cara de parvo, à minha cara de incredulidade porque da janela via o mar, e das duas uma, ou a janela estava ao lado da porta, ou,
- ou eu estou a ficar louco
Ou o mar dá a volta à minha casa, a minha casa dentro do mar, e por essa ordem eu conseguiria ver o mar da janela e ver o mar da porta, e a janela e a aporta, em sítios distintos, opostas uma à outra, e
- O crucifixo pendurado na parede do quarto olha-me
E eu detesto, não gosto, e eu fico muito chateado com o olhar de um crucifixo que sempre me lembro de ver naquela posição e que desde miúdo está ali pendurado como se fosse um retrato de um falecido, quando o mar me rodeia eu fico em silêncio, chamo as gaivotas à minha mão e na minha mão poisam cansaços da noite, e da noite
- dois quadros olham-me e trocem o nariz à minha cara de parvo, dois quadros e um crucifixo, e finalmente percebo que não estou só dentro da casa rodeada pelo mar, eu na companhia de três fantasmas pendurados na parede,
Eu chamo as gaivotas à minha mão, e na minha mão começa a acordar o sono, viro-me para o lado, lentamente fecho os olhos e espero, espero que o sono tome conta de mim.

(texto de ficção)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O último desejo

O último poema da noite
O último cigarro
Uma luz seminua que se acende
E uma página do livro de Lobo Antunes
Poisa na minha mão
O último pensamento
Antes do último desejo…
“Titina” junto à porta sorri
E eu deixo cair a caneta
Sobre a noite que se desfaz como grãos de areia
Nos lençóis encurralados entre as estrelas
E depois do último poema
Do último cigarro
Depois do último desejo
Cerro o livro
Cerro a luz
Fecho a janela virada para o mar
“Titina” adormece
E o meu último cigarro sobrevive
À solidão da noite

Estranhamente Só


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Os dias embrulhados nas coxas da noite

Não faço nada... imagino que está frio,
E às vezes sinto frio de não fazer nada... e que bom, eu mergulhar no Douro lentamente como se fosse uma pétala a descer o corpo de uma mulher, uma qualquer, ou homem, um qualquer, prender-me ao fundo e esperar que a minha respiração cesse, e que da noite desçam até mim as estrelas, FIM, e no teste de História o doutor Morais com a caneta vermelha,
- FIM da brincadeira, princípio do estudo,
REPROVADO,
E ainda não é desta e desço e desço e desço até ao fundo do rio e toco e toco e toco com a mãozinha no lodo, e não e não e não cessa a minha respiração, e não e não e não estrelas vindas da noite, CONTINUAÇÃO,
Do dia de ontem igual ao dia de hoje, o mesmo sol, o mesmo calor, as mesmas nuvens e a mesma noite,
Tudo igual,
- Escreve-me um poema!,
Não e não e não, não,
O coitadinho de mim, e ela com uma pedra de gelo desde o meu pescoço até… e apanha-a com os lábios como se fosse um silêncio de nada, o coitadinho de mim suspenso na continuação do dia de ontem, e irritam-me os dias sempre iguais, nem morro nem mato nem dou seguimento à minha existência medíocre, o pacóvio adormecido nas noites milagrosas de Agosto, o vendedor de sonhos na feira da ladra,
- Baratinho só cinco euros,
Peço desculpa, onde se lê cinco euros deve ler-se mil escudos,
Embrulhados na algibeira para as noites tórridas de verão e sobre a mesa da esplanada sílabas de cerveja e vogais de tremoços, e o estômago incha, e o liquido derrama-se no escuro muro de vedação da noite, e estrelas?,
- Estrelas?, quais estrelas?,
No fundo do Douro,
Não desceram estrelas do céu, o céu não existe, o Douro não existe, as estrelas não existem, o mar não existe, e, e o poema não existe,
- O poema és tu PARVALHÃO,
Os dias embrulhados nas coxas da noite,

Da pele de silêncio as gotinhas pétalas das tuas mãos
Os sorrisos seios do teu peito
As finíssimas nuvens dos teus lábios
Na entrada húmida e cintilante boca de esmeraldas,

- Olha… passou-se,
Os dias embrulhados nas coxas da noite, CONTINUAÇÃO,

As tuas cristalinas palavras que escreves
Quando a madrugada se despede na ópera da noite
E o teu púbis mergulha no meu corpo de silício…
Do meu corpo na combustão da tua sombra,

Da pele de silêncio as gotinhas…
A mão que deixa cair-se lentamente em ti
Como se fosses um pedacinho de neve
E a minha mão aos poucos na tua solidão.

- Não faço nada... imagino que está frio,
E às vezes sinto frio de não fazer nada... e que bom,
Quando as estrelas descem até ao fundo do rio, e um corpo cessou de respirar, e que bom perceber que esse corpo não é o meu, o meu, o meu corpo pendurado no espelho do guarda-fato e batem-me à porta; vamos jantar.

(texto de ficção)

Cresce-me no peito um peso imensurável

Cresce-me no peito um peso imensurável
Trazido pelo fim de tarde
Cresce-me no peito o cansaço da solidão
Num campo de malmequeres

Corre um rio na minha mão
Que desagua no meu peito
Apertado pela dor
Espremido pela chuva

E corre apressadamente no relógio de parede
O peso do meu peito
O sufoco do dia que nunca mais termina
Sem fim…

Sem cor os meus dias pintados numa parede
E a parede esconde-se da luz
Fica negra
E geme no silêncio da noite escura.

A ardósia da tarde

A ardósia encostada aos calções da tarde,
Francisco de Francisco, inventa letras na sombra das amoreiras, desenha pássaros dentro da cabeça, e pendura nos cabelos pedacinhos de estrelas, pedacinhos de pequeníssimas gotinhas de água, chamam-me da rua, Francisco de Francisco, olho, e sinto o cheiro dos peixes estacionados, Madalena acena-me e sorri-me, há quanto tempo Francisco,
- Há quanto tempo vagueio pelas sombras da cidade, há quanto tempo trago em mim o cheiro da saudade, há quanto tempo, quando o pinheiro ranhoso do recreio da escola me dava comichão, e eu fazia-lhe festas com a mão, há quanto tempo não me sento junto ao rio e olho os barcos emagrecidos nas tarde de Belém,
Sorriem-me,
Os comboios de passo apressado rumo a Cascais, o cão da senhora idosa faz chichi no candeeiro de parede, engordam as sombras dos veleiros em Algés, mingua o vento que desce a Calçada da Ajuda, ele baixa o vidro do automóvel ancorado junto aos Jerónimos e convida-me para irmos dar uma voltinha, e eu pensava, e se te fosses foder seu paneleiro, cinco contos e faço-te um, vamos, esta cidade infestada de ratazanas com cio, desço as escada e o mictório à minha espera, uma cabeça ao meu lado deseja a minha pila, os camaradas do quartel, ontem fui com um, fez-me um broche e ganhei cinco contos e depois, depois ainda lhe fodi os cornos,
- Salva-me, salva-me Madalena desta cidade infestada de ratazanas,
O pôr-do-sol junto ao rio,
Os teus braços pendurados no meu pescoço de menino perdido no cacimbo, as tuas mãos nos meu lábios quando corria no capim e tropeçava numa sombra, deitava-me de barriga para o ar, esperava pelo perfume do teu corpo antes de emergir a madrugada, descobria-te por entre os lençóis amarrotados da noite, o Doutor Jivago de castigo no armário, no corredor dezenas de pilas em fila à espera de escreverem na ardósia as sílabas da cerveja,
- Como consegues viver nesta cidade, Madalena?, as ruas não têm fim, os prédios escondem-se no sorriso das pernas apressadas que caminham no fim da tarde, salva-me Madalena,
O sol extingue-se,
O vinte e oito engasga-se em Cais de Sodré, os enjoos que surpreendem taxistas de perna entrelaçada na minissaia das meninas do Texas, e há quanto tempo,
- Tira-me daqui, Madalena,
Sem tempo,
Há quanto tempo me ausentei de ti minha cidade, há quanto tempo deixei de caminhar nas tuas ruas, e o meu corpo balançando com o peso do vento, tombava junto à Torre de Belém, bebia café na esplanada de Belém e o pires da chávena deitado sobre a água do rio, a chávena suspensa na minha mão e chamava por ti, gritava às gaivotas que me trouxessem a ardósia da tarde, e eu pensava, preciso novamente das palavras que enterrei nos socalcos do Douro, e a manhã parece não ter fim,
- Salva-me…
Fim dentro de mim,
Não respiro, deitado, a caixa de madeira entranha-se nas minhas costas, o sabor amargo do pinho, o crucifixo pendurado numa das tampas olha-me, vestem-me um fato, gravata e sapatos engraxados, e eu resmungo, não quero fato, não quero gravata e não sapatos engraxados, não respiro e dentro de mim flores que abrem os olhos, da terra o peso da matéria, não respiro, a tosse aumenta de volume, as pazadas de terra diminuem, cessam, o meu corpo coberto na ondulação do mar de Luanda,
- Não vieste Madalena,
Descansa em paz.

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Sémen da ortografia

Enrolado a mim
O teu corpo onde escrevo poemas
E a meio da noite
Leio com as minhas mãos…
Os poemas que escrevi no teu corpo
Com a esferográfica do desejo

Os malmequeres poisados sobre a mesa de cabeceira
Iluminam o teu corpo banhado nas gotinhas de poemas
As sílabas gemem quando as minhas mãos lhes tocam
E se misturam no sémen da ortografia

(primeiro orgasmo literário)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Endereço vazio

Há um endereço vazio suspenso numa porta de entrada invisível que vive numa rua sem saída dentro de uma cidade imaginária.
E todos os dias, quase todos os dias, eu enviava currículos para um endereço vazio, mandava porque cansei-me de mandar, porque fartei-me de ser humilhado, e por razões políticas e porque gosto de escrever e porque gosto de desenhar e porque gosto de ler, os meus currículos são enfiados no caixote do lixo.
A minha existência resume-se a dois blogs (Orgasmos Literários e Cachimbo de Água) e um endereço vazio suspenso numa porta de entrada invisível que vive numa rua sem saída dentro de uma cidade imaginária que todos os dias, quase todos os dias, eu enviava currículos…

A árvore dos silêncios

Quando a árvore dos silêncios
Caminha sobre o mar
E em pétalas de sorriso
Voam as gaivotas até ao infinito,

E o vento as leva
E no vento se desfazem como pedacinhos de papel
Quando a árvore dos silêncios
Emagrece nas sombras da noite,

E uma mão afaga-me o rosto
Limpa-me as lágrimas de escuridão
E sinto que a árvore dos silêncios…
Corre e corre e corre sem parar,

Caminha sobre o mar!

A cidade

No finíssimo acordar do orvalho, quando se encalha nos teus ossos até aos alicerces, a madrugada finge deliciar-se com a tua solidão, e sem pressa, muito devagar, aos poucos, derrete-se no corpo de um sem abrigo qualquer.
A manhã dá os primeiros avanços nos ponteiros do teu relógio biológico, e o dia, ao ritmo de um amor esquecido numa esquina da cidade, avança sem pressa na direcção do abismo.
São 9:00 horas.
Estou na esquina da cidade.
O rapaz da esquina, sempre à espera dum cigarro apagado e esquecido no chão, mesmo pertinho dos seus sapatos que mais parecem um automóvel após um choque com o desconhecido, não tem pressa nem medo do passado que se recusa a falar e a admitir que teve passado.
- Tem um cigarrinho?
Não. Não fumo.
As ruas da cidade fervilham e nas suas veias o sangue jorra no então agora circuito mágico do teu imaginário. Tens medo. Eu tenho medo.
Tenho medo de ser teu amigo, tu, filho da cidade, e que adoras o Deus Amo-te,  irmão da Deusa Odeio-te. A tua mão deixou de ser esbelta, aquela que no passado acariciava o sorriso das minhas ruas, deixou de existir. A demolição foi eminente, os teus ossos abandonados na penumbra da manhã, escondem-se no nevoeiro junto ao rio, e à boleia, correm para o mar.
São 9:00 horas
- Tem um cigarrinho?
Não. Não fumo.
O perfume de sexo barato liberta-se e da pensão dos vinte e cinco euros um finíssimo acordar do orvalho, finge fugazmente não perceber o cheiro. No intervalo dum cigarro e apressadamente, mas devagar, rio-me da tua figura; pareces uma delinquente encalhada como um veleiro na marina. Queres acordar, mas o cheiro intenso deixa-te na escuridão dos lençóis meio limpos, meio sujos, meio molhados. E ainda há pouco estiveste dentro de mim, como se tu e eu, nós os dois, fossemos apenas um, a unidade inseparável. E consigo ver a tua sombra que se espalha pela imensidão, e todo o quarto se ilumina quando acordas e sorris para mim.
Bom dia, meu amor!
- Tem um cigarrinho?
Não. Não fumo.
São 9:00 horas.

(texto de ficção)

A noite

A noite tem algo de especial, de belo, a noite quando desce até à montanha e um corpo desassossegado se levanta e sem pressa caminha e caminha e caminha, e a noite, a noite o acompanha,
A noite é assim,
Um silêncio poético dentro do livro dos sonhos,
A noite, a noite é a almofada de deus, e deus, deus uma equação matemática complexa, incompreendida, e quem descobrir a resolução desta equação terá o poder de criar o universo…

terça-feira, 22 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Os gemidos das palavras

Baixo os braços e encosto-os às silabas solitárias,
As palavras deixaram de crescer em mim depois de a tempestade ter derrubado as árvores do meu quintal, do vento apenas sobejou os pequeníssimos fios de luz da tarde, e no teto do céu meia dúzia de estrelas esquizofrénicas brincavam com um triciclo de madeira,
Baixo os braços,
Desisto de olhar novamente o mar e sinto que não tenho coragem para lhe tocar, passa por mim um paquete enrolado nas ondas adormecidas e cerro as janelas do meu olhar, não barcos, nunca mais tocarei num barco, não gaivotas, nunca mais tocarei numa gaivota, não pôr-do-sol, nunca mais tocarei no pôr-do-sol,
Baixo os braços e escondo a cabeça debaixo do pavimento térreo da minha cama como a avestruz quando cansada quando triste quando desanimada,
- Quando só,
- Eu muito só,
Eu triste e desanimada,
E bato as asas em direção às nuvens onde me esperam, e sentado à direita dele, ela deitada sobre um feixe de mel e algodão doce, bato as asas em direção às nuvens onde me esperam e sobre a mesinha-de-cabeceira uma ardósia despida que mergulha na banheira,
- Acaricia-se no vapor da madrugada,
E as palavras em gemidos contra os azulejos pintados com sorrisos e beijos, flores, as flores que dormem no corredor do meu casebre,
Eu triste,
- Eu muito triste,
Eu tropeço nas flores e uma lágrima nas primeiras chuvas se abraça à terra ressequida,
Acaricia-se no vapor da madrugada, e a ardósia masturba-se com um pedacinho de giz, e de dentro da parede do quarto emerge um crucifixo embebido em vodka, e que saltita na Ajuda e rebola até ao rio,
Sinto frio e deixo de tocar em barcos, sinto frio de deixo de tocar no mar, sinto frio e deixo de tocar em gaivotas,
- Ela masturba-se,
A ardósia sorri na sombra do candeeiro a petróleo,
- Eu triste e desanimada deitada sobre a mesinha-de-cabeceira e espero e espero e espero pelo abraço do Carlos, e espero e espero e espero, e do meu púbis as ondas do mar e sinto um arrepio de luz, e a manhã começa aos poucos a erguer-se entre as sementes trazidas pelo vento,
As palavras deixaram de crescer em mim depois de a tempestade ter derrubado as árvores do meu quintal, baixo os braços e encosto-os às silabas solitárias, ela masturba-se na solidão da noite em soluços de suicídio, eu muito triste,
- Eu muito triste e desanimada,
As flores,
Das flores os pequeníssimos fios de luz da tarde e meia dúzia de estrelas esquizofrénicas, nas flores as palavras de suor que transpiram de uma finíssima folha de papel invisível,
E nos lábios de uma mulher invisível,
- Eu triste e desanimada,
As acácias despedem-se das silabas solitárias,
- Eu triste e desanimada, eu desanimada e muito triste,
Estar só dentro de uma caixa de sapatos,
E oiço os gemidos das palavras que acordam na garganta da ardósia,
E o Carlos não vem,
E morro dentro de ti como uma alga atirada contra as rochas da solidão,
- E o Carlos que não vem…
E espero e espero e espero,
E morro dentro de ti.

(texto de ficção)

A tarde

A tarde, suspensa
Entre duas conversas de ninguém,
O teu relógio atómico
Marcava dezassete horas, dezassete minutos e dezassete segundos,
O meu telefone, deixou de tocar,
Arrumaste-me na prateleira do teu pensamento,
No cantinho junto ao desejo,
Mesmo debaixo da saudade.
Lá fora, no esquecimento,
Ninguém…
Apenas os pássaros à tua procura, irritados
Com a tua ausência.
A tarde, suspensa
Na maré, finge que sou esquecimento,
Monstro marinho,
E sinto-me transportado
Para o longínquo destino; o meu passado.

A tarde, suspensa
No teu relógio atómico,
E amanhã, ninguém se lembrará de ti,
É outro dia, outra tarde, desconhecido momento.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Carta a deus

Nem sei como começar, Pelo princípio Rapaz pelo princípio, então é assim e nem sei como devo tratar-te, deixa lá o tratamento Rapaz o tratamento não importa o importante é o que tu tens para me dizer, e tanta coisa que tenho, então começa, meu deus ou simplesmente deus ou amigo?, isso não importa, está bem Meu deus às vezes fico sem perceber a razão da tua existência, Como assim Rapaz?, Não sei… é tudo tão estranho…, continua, quando penso fico com a sensação que existes apenas para te divertires à nossa custa, Estás a ser injusto Francisco Não é verdade o que afirmas, está bem Desculpa, mas é tudo tão estranho, Estranho?, Sim estranho Repara Desculpe Repare quando penso em si parece que desde que nasci nunca quis saber de mim Nunca e que nunca está ao meu lado Nunca e que eu não sei explicar mas é tudo tão estranho meu amigo Tão estranho e Desculpe-me mas parece que nunca quis saber de mim.
Muito injusto Francisco Muito injusto E quando estiveste a morrer quando eras bebé quem julgas que te segurou na mão e não deixou que vacilasses, Porquê Porque não me deixaste morrer?, Porque Rapaz a minha função não é salvar nem matar A minha função é segurar na mão de quem sofre e acompanhá-la, Só isso? E achas pouco?, Parece-me pouco!
Às vezes acredito que está sentado num trono de oiro a olhar-nos A divertir-se à nossa custa e a contar as estrelas do céu, E voltando à nossa conversa Quem pensas que esteve ao teu lado quando mais precisaste E já sei que me vais responder, Os meus pais, E só eles?, que eu saiba Só, E eu? Acreditas que nunca estive ao teu lado?, Sim acredito, Mas não é verdade Sempre estive ao teu lado Sempre, É tudo tão estranho… meu Amigo.
Parece-me que a missão dos seres vivos é continuarem a vida para que você sentado num trono de oiro possa olhar-nos e divertir-se à nossa custa e a contar as estrelas do céu, porque se não for assim qual é o sentido de Nascer Crescer Morrer?
Nem sei como começar, Pelo princípio Rapaz pelo princípio, então é assim e nem sei como devo tratar-te, deixa lá o tratamento Rapaz o tratamento não importa o importante é o que tens para me dizer, e tanta coisa que tenho para lhe dize que cruzo os braços e finjo que não acredito em si…

(texto de ficção)

Cadáver suspenso no infinito

Os eletrões dos teus olhos
A trezentos mil quilómetros por segundo
E no buraco negro da minha boca
A matéria agarrada às paredes da garganta

Os eletrões entram no meu buraco negro
E desaparecem como pássaros ao amanhecer
Morrem as estrelas
E da luz acorda o esqueleto da gravidade

E quando olho a estrela que morre
A estrela já morta há milhões de anos…
E se eu já tivesse morrido
E a imagem da minha morte perdida no infinito?

A miúda da t-shirt de alças

Uma tarde destas nunca se esquece, não, nunca, e a t-shirt de alças enrola-se-lhe no corpo quando na janela o som do sol adormece na tarde, ela sorri às frestas da sala e murmura palavras em silêncio, gemidos escancarados quando da rua sobe até ao quarto andar o chamamento de uma gaivota em transe, ele e ela, minúsculas gotinhas de suor os separa, pequeninos pássaros poisados nos plátanos, ele abraça-a e sente a pele dela embebida na t-shirt e a t-shirt com o caminhar dos segundos empapa-se-lhe misturando sorrisos com lábios, misturando boca com nuvens, dos seios semi-nus vêm até ele palavras, vêm até ele sílabas e vogais, e o corpo dela parece estar dentro de um hipercubo, e entre ela e a luz, entre ela e a luz uma finíssima t-shirt de alças baloiçando nas mãos dele.
Um cigarro engasga-se e finge esconder-se na sombra do soalho, do sofá emerge um veleiro à procura de vento, o cigarro perde-se e desaparece na noite, a t-shirt aos poucos emagrece, diminui, e esconde-se junto ao mar, o centro de massa do corpo dela desloca-se, roda nas mãos dele, as mãos dele acariciam as coxas transpiradas dela, no vácuo sente-se o cheiro a musgo que se multiplica no chão, pequeníssimas gotinhas de prazer saltitam num crucifixo pendurado na parede que os olha, da boca dela crescem ondas,
- Amo-te
Da boca dela a palavra amo-te pendura-se no púbis, crescem ondas que brincam com o néon que lhe ilumina os seios que brincam na minha mão, sinto-os como sinto a maré quando estou deitado debaixo de uma mangueira, e à minha volta o capim aleija-me nas costas, da boca dela a palavra amo-te leva-me até Luanda, sento-me no meu triciclo de madeira, e sei que o corpo dela aos poucos mistura-se com o meu, somos apenas um corpo no chão da sala,
- Amo-te
Uma tarde destas nunca se esquece, não, nunca, na Baía de Luanda a noite começa a engordar nos ponteiros do relógio que tenho pendurado na cadeira onde estou sentado, finjo estar acordado, mas por entre as nuvens olho o corpo dela que se esconde no luar, e percebo que também eu, também eu a amo muito…
(texto de ficção)

A fábrica dos desejos

A fábrica dos desejos dentro do peito que liberta pela boca os sonhos da noite, os cortinados dos olhos que se prendem ao sentido proibido da rua, as sandálias de cabedal e os calções que fogem dos mabecos, e as árvores que abraçam o esqueleto em equilíbrio estático na varanda das nuvens,
- Despeço-me da vida com a vida sem vida, alimentava-se a candeia de azeite na surdez da cozinha,
Os móveis na garganta do caruncho que sorriam através das fendas milimétricas da tarde, o calendário na parede em apalpões a uma mulher nua, máquinas agrícolas e industriais limitada, e hoje é dia, ele à procura do número de telefone do anunciante, a mulher questionava-o para que ele queria o número e em sorrisos respondia Para nada!, e continuava Apetece-me conversar com alguém!, a mulher fincava o dentes e com focinho de penico gritava-lhe E eu, não sirvo para conversar?, e ele ignorava-a nos azulejos da cozinha,
- E o que é a vida?, perguntava-se a candeia virada para o calendário, para mim apenas sucessivos números em viagem para o futuro, a voz do calendário na saliva dos minutos,
Está a ouvir-me?, continuava a mulher em gritos, Fala mais baixinho que não sou surdo, ria-se o palerma paralisado na gaja nua do calendário, deixa-me em paz responde-lhe ele, E se te fosses foder?, E fodido já eu estou Natália!, És mesmo um parvalhão…, olha, Vou sair!, A esta hora?, Venho já, vou comprar cigarros!,
- E nunca mais voltou?, e o Carlos explica à namorada que desde aquela noite nunca mias voltou a ver o pai, não sei se está vivo, não sei se morreu, E a tua mãe?, a minha mãe morreu uns anos depois,
A fábrica dos desejos dentro do peito que liberta pela boca os sonhos da noite, os cortinados dos olhos que se prendem ao sentido proibido da rua, e na cozinha a candeia que espera o regresso da sombra dos cigarros, o azeite consumido pelo desejo de uma criança e a gaja nua do calendário envelhecida, o corpo parece um amontoado de silêncios, a pele coberta de espinhos, o sorriso agreste entupido na prótese dentária, e dos seios nasceram-lhe seixos que olham o mar e quando passam os barcos lhe tocam e uma luz se acende nos olhos dela…

(texto de ficção)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Porquê Natália?

O link, amor, com beijinhos,
Natália,
Quando as gaivotas entre o vento e as ondas do mar desapareciam na chuva miudinha da tarde, as últimas palavras de Natália O link, amor, com beijinhos, desligou o interruptor da noite sem antes colocar sobre a mesa-de-cabeceira uma rosa que acabava de despregar-se do teto, cerrou os olhinhos, colocou as mãos trémulas sobre as árvores do peito, e partiu,
“E claro que o texto está bem escrito, e claro que Lobo Antunes não é para todos, e claro que para todos são as bibliografias de CR7 ou do camarada Mantorras, esses sim, verdadeiros campeões de vendas, porque Lobo Antunes é só para quem pode”, e quem pode manda, deslizava nos ponteiros do relógio a voz do Arrependimento,
Sobre a toalha uma chávena de lágrimas e o açucareiro submerso no vazio dos dias, a falta de dinheiro, a fome, as dívidas, a doença, o teto desaba e junto ao rodapé as nuvens que atravessam o tejo, e a Natália desesperava, e a Natália acreditava que o futuro não existia, e amanhã o sol não vai acordar, e o Arrependimento diz-me que não, não desaba o teto, não descem as nuvens até ao rodapé, e o sol acorda todos os dias,
E mesmo uma espingarda apontada à cabeça, esta, por motivos técnicos, pode encravar, e não me venhas com as estórias de sempre, Natália, tudo tem solução, exceto a morte, mas ficares sentada com o gás aberto não quer dizer que vás morrer, porque se não tiveres que morrer naquele momento não morres,
Sabes, Natália, sim diz, conheci uma gaivota que voou, voou, voou em direção ao céu, e quando já se encontrava muito longe da terra e quase em conversas com deus, começou a arder e desfez-se em pedacinhos de papel, deus olhou-a, e nas cinzas escreveu,
O link, amor, com beijinhos,
Natália…


(texto de ficção)

As folhas esquecidas no quintal de Luanda

Entalado na garganta das coxas da mãe,
E as primeiras silabas, e as primeiras vogais, a primeira palavra esquecida na fralda de pano, as primeiras frases, os textos pendurados no estendal na sombra das mangueiras, no canto esquerdo da alcofa um pequeníssimos rádio a pilhas vomitando silêncios, e ele no sono profundo da tarde de Luanda, e nessa altura não sabia o significado de mar, e nessa altura não percebia o que eram barcos, e desconhecia que as gaivotas eram gaivotas e não papagaios de papel, nessa altura, eu era feliz, segreda-me ele,
- Fixar os olhos no gesso do teto e contar as estrelas da noite,
Segreda-me ele, o corretor do novo acordo ortográfico engoliu-me o C do TECTO, e no interior de milhões de estrelas um C à procura do teto, e repete-se na língua empapada da sopa de legumes, nessa altura eu era feliz, derramava as palavras amolecidas que saiam do intestino e mergulhavam na fralda de pano, O cheiro intenso a poesia!, recorda hoje a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, ele sentia as palavras na finíssima pele das nádegas e com um sorriso chamava as lágrimas aos olhos verdes do amanhecer, o rádio a pilhas cessava silêncios, e irritava-me olhar o enumerado de fuças em romaria à minha volta, como se eu fosse um deus minúsculo, rabugento e que passava a maior parte dos dias em sonhos perdidos nas planícies de Angola, enquanto folheio o álbum de fotos do meu pai,
- E uma e duas e três e quatro, em voz alta, e quando estou no momento de gritar a quinta estrela, finco os dentes no biberon, um arroto levezinho, e bons sonhos meu filho, com um beijo na testa, a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
Lembro-me do meu pai em calções e a atirar pedras para o rio, ou seria eu?, questiono-me, esqueci-me e enquanto mastigo os pedacinhos de fotos do álbum dele, não pedras, meras paisagens deslumbrantes estacionadas debaixo da mesinha na sala de estar, lembro-me do meu pai a transporta-me às cavalitas, eu e os textos poisados sobre os ombros cansados da semana em corridas pelos musseques,
- O pigmeu de orelhas pontiagudas de braços no ar pensando que tocava nas estrelas,
Os musseques pesavam-lhe nos ombros e agarravam-se-lhe às pernas, e a bedford amarela em labaredas cinzentas pela boca,
Parvo hoje ainda não escrevi nada e só o farei à noite,
E a bedford amarela a derreter palavras no fim de tarde, os enzóis dos pássaros presos às folhas das mangueiras,
- E talvez consiga tocar na sexta estrela, pensava o filho da mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve,
E diga-me lá, senhor, diga-me lá, lamentava-se a mulher encurvada nos anos e com os cabelos argamassados de neve, e se não fosse eu quem lhe matava a fome,
E ainda ele entalado nas minhas coxas e as palavras dele misturadas com o meu sangue, e diga-me lá senhor, o que seria de mim se não fosse ela, os meus desabafos nas folhas de mangueira esquecidas no quintal de Luanda.

(texto de ficção)

A sala de espera

Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu apenas queria fazer a depilação. Nada de mais. É assim tão difícil?
Vou à janela e puxo de um cigarro, eu sei que não devia fumar, mas também não devia ouvir certas coisas e oiço, e das conversas que se construíam na sala de espera de nada me interessavam; eu só pretendia fazer a depilação…
Em cima de uma mesa as revistas do costume, as perguntas parvas do costume,
- beijei o meu namorado, será que estou grávida?
E eu que já nem me lembro da ultima vez que me veio o período,
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
No rádio alguém pede Tony Carreira,
- que mau gosto,
Na parede um crucifixo olha-me, deseja-me, e eu a ficar sem jeito,
- talvez porque hoje tenho a saia curta de mais,
Começo a sentir-me possuída com aquele olhar, incomodada, mas…
- mas Cristo também devia desejar mulheres,
E eu feliz por me sentir desejada…
O cigarro musicalmente vai percorrendo as avenidas da minha espera, e do fumo, do fumo vejo as sílabas a saírem pela janela, em baixo, na rua, um homem muito mal vestido pede cigarros,
- um cigarrinho,
E as sílabas a construírem frases, e das frases… palavras que se encaixavam na minha mão, e a minha mão não um livro,
- uma mão,
Um livro perdido na janela do primeiro andar, um livro onde não posso escrever mais nada, e ele aos tropeções nos paralelos da calçada,
- minha senhora, um cigarrinho por favor…
Não fumo,
Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu nem o apanho nem o derrubo, eu só quero fazer a depilação.
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
E o meu namorado junto ao rio a contar algas, e de cigarro na boca envia mensagens às gaivotas, e as gaivotas não até mim, eu no primeiro andar, desejada por um crucifixo há não sei quanto tempo naquela posição, esquecido na parede juntamente com as fendas,
- há quanto tempo se formou o universo?
Nada de mais. É assim tão difícil?
(texto de ficção)

A doce almofada da noite

Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite,
A minguada sombra do meu corpo projetada na parede, Estou tão magro, mãe!, pergunta-me porquê, e que nem eu sei, segredo-lhe com um beijo na face amarrotada dos anos e das canseiras da vida,
Provavelmente das geadas de inverno, provavelmente dos socalcos do Douro, provavelmente da idade, provavelmente porque envelheço duas vezes ao ano, adormeço várias vezes por noite, e caminho diversas vezes durante o dia em círculos à volta da fogueira, a cinza do cigarro dilata-se na minha mão que não serve para nada, nem para acariciar o rosto de uma flor, nem para poisar sobre o vento,
E ficas tão bonito quando desfazes a barba!, e digo-lhe que não sei, Não sei mãe, nunca me olho no espelho do quarto, tenho medo, e possivelmente deixe de desfazer a barba e cortar o cabelo,
Ser livre como as árvores de ramos ao vento, voar como os pássaros e poisar onde me apetecer, ser livre enquanto o meu rosto adormece na doce almofada da noite, e as minhas mãos chapinham nas ondas do mar, Fiquei desiludido, mãe!, a voz dela cansada Porquê, meu filho?, e as minhas palavras colam-se no silêncio da ténue luz do candeeiro, Li um poema de AL Berto em que ele dizia “o mar entra pela janela”, e noite após noite, Mãe!, nem o mar nem notícia boa,
Porquê, Mãe?,
Adormeço os meus lábios na doce almofada da noite, em vez de o mar entrar pela janela entram-me as ruas de Lisboa, o Tejo e os cacilheiros, Belém e o comboio para Cascais, os jardins e a ponte, os carros estacionados na peugada do engate e mangalas que faltam pela janela e se suicidam à porta de armas, e o sargento em pedacinhos de enjoo apanha os desperdícios que vacilam pela calçada, ao fundo o rio, E adormeço, mãe!, e quando acordo, Quando acordo, mãe, não existe Tejo, não existem cacilheiros, não existe Lisboa, O que existe, mãe?, apenas o cheiro dos bares de Cais de Sodré às cinco da manhã, e a pé até Belém acredito que amanhã está sol, E sabes, mãe?, vou à janela e não sol,
Nuvens penduradas no céu e vontade de fugir.

(texto de ficção)

domingo, 20 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Sem as palavras deixo de existir

As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite,
As palavras murcham
E o peso da angústia alicerça-se em mim
Como um vulcão
Dentro da montanha,
As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite
E nunca mais regressam,
Ausentam-se no paralelepípedo da maré
E encostam-se à coluna vertebral
De um cargueiro em aflição,

Deixei fugir as palavras
E deus brinca com elas
Sobre uma mesa de mármore
E uma jarra de gladíolos,

As palavras que escrevo
São as sombras que sobejam da noite,
As palavras murcham
E o peso da angústia alicerça-se em mim,
E sem as palavras deixo de existir,
E o peso da angústia
Sobre o meu corpo carbonizado pelo perfume das rosas
Evapora-se entre os eucaliptos juntos ao rio.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Desejo

Desejo-te quando as páginas do teu corpo
São folheadas pela minha mão
E os meus olhos leem
As gotinhas de suor da tua pele

Desejo-te quanto te transformas em poema
E te deitas sobre o meu corpo
E me abraças
E dos teus lábios crescem as sílabas da tarde

Desejo-te quando o livro do teu corpo
Dorme dentro dos lençóis da biblioteca
E sobre ti todos os poemas
E dentro de ti… Eu desejo-te