segunda-feira, 4 de julho de 2022

As tulipas negras do Inverno nosso

 

Perdidas, cansadas de habitar a prateleira superior dos sonhos, as tulipas negras antes de adormecer, lêem um poema de AL Berto. Sob o sonâmbulo tecto da alvorada e, após o silenciar de todas as sílabas, começam a ouvir, aos poucos, os pedacinhos em desejo que a madrugada transporta até ao luar que acaba de se deitar na almofada do sono.

As tulipas, alicerçam-se ao fim-de-tarde que voa em direcção ao abismo, porque em cada mão, elas, aprisionam o feitiço de uma cidade em ruínas. Das janelas, ouvem-se as silenciadas vozes dos espantalhos em passos apressados que de pé-ante-pé voam pelos campos de milho nas paisagens de Carvalhais.

Sabíamos que podíamos confiar nos poemas de AL Berto, mas quanto a confiarmos nas tulipas negras, já não estávamos tão certos, pior ainda, estas são pequenos esqueletos em papel, com desejos, que amam, que beijam, que gemem quando a noite entra pela algibeira do púbis envenenado na inocente luz escolar.

Perdidas, cansadas de habitar a prateleira superior dos sonhos, ouviam-se-lhes os outros poemas que em finas lâminas de maré corriam em direcção ao mar, depois, um velho pedaço em madeira, sem perceber a razão, levantava os braços apontados para o céu, e

Que assim seja, meu amor; todos percebíamos porque dormiam as acácias dos teus lábios.

E numa conversa de desespero, sempre antes do almoço, a pequenina madrugada sabia que também ela acabaria por morrer contra os rochedos da dor, como morrem os pássaros antes de bater as dozes horas nocturnas na torre da igreja; Deus queira que sim,

porque se não o for, salvamos-mos com os outros poemas de AL Berto, que muitos anos antes, líamos na companhia de uma esplanada envenenada pela nortada das abelhas em delírio quando alguma das pétalas envergava um fato e gravata e sapatos bicudos e engraxados pelo velho Armando e que no Café da Paz adormecia sem perceber que o sono e que diziam que adivinhava as horas antes de olhar o relógio e que cada vez que dormia e como um zumbi desenhava gargalhadas nas paredes e,

regressava o Medo; finalmente AL Berto se levantava das nossas coxas de incenso que quando vomitava labaredas de sono, ele, ela, nós,

o velho engraxador,

voava como um cargueiro esquecido em alto mar.

Hoje, percebo que as tulipas negras escondiam dentro do peito uma finíssima folha em papel, que dos sapatos bicudos, hoje, são apenas um pedaço de sola à venda no OLX. Pudera, pois sabíamos que as lágrimas de crocodilo que saltitavam de cadeira em cadeira eram apenas pedacinhos de lenço que quando sabujava algum tempo, deixava algumas letras e outros tantos riscos, que hoje ninguém consegue decifrar; apenas o Medo.

A boca abria-se-lhe e, num ronco desproporcional, lançava-se à conquista de almas gémeas e rezas de açafrão. Também diziam que ele inventara o sono numa noite de neblina, que depois, nunca mais foi o mesmo após provar as ditas sílabas negras das tulipas em flor.

Cansado, vossemecê?

Pudera.

Os sapatos envelheceram. E todas as gargantas hoje são apenas espojas que dizem absorver os poemas de AL Berto.

Diga-se; que delícia.

Comíamos-mos como se comem as borboletas antes do nascer do sol, e no entanto, a gabardine de tom escurecido devido ao surro, poisa hoje sobre uma sepultura em mármore e recheada com flores de trevo.

Dizem que dá sorte…

E que sorte terá um tipo que morreu antes da puberdade desenhar-lhe nas costas rebaixadas pela enxada do sono, que depois de partir, esfumou-se numa bandeira apátrida, a infância adormecida.

Provavelmente, nenhuma. E obviamente, demito-o, como se demitem os anjos antes do toque do clarim que se fazia ouvir numa Belém recheada de magalas em delírio por um estacionamento numa qualquer esplanada junto ao rio; estacionávamos as botas pesadas que transportávamos como se fossem ferraduras invisíveis…

E voávamos até ao pôr-do-sol.

 

 

 

Alijó, 04/07/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 3 de julho de 2022

O puto

 

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, diga-se; tínhamos trazido da antiga ilha da solidão todos os leitos do amor proibido. Nas ruas da cidade, ouviam-se os gritos dos cacilheiros que durante o dia transformavam o tejo em pequenas estradas de transeuntes e, sob o viaduto em Cais do Sodré, putas finas guerreavam-se por cinquenta escudos.

O sono, que de algibeira em algibeira, de lapela em lapela, desenhava-se no pavimento lamacento em pequenas vozes sinusoidais e ao fim de alguns gritos e gemidos, acabava sempre por regressar a uma Belém envenenada pelos putos em busca de sexo e depois de alguns escudos, escondiam-se rio adentro como que crianças em fuga da literatura que nesta ou naquela rua, se vendia a preço de saldo.

Uma noite mergulhei no poema da saudade, acreditando que depois do sono, acordarias sobre as lâminas do medo, mas mal visto, nada poderia na altura vaticinar que as janelas do teu olhar, hoje, sejam apenas cacos e pequenas migalhas.

O poema, às vezes, enquanto o poeta fumava cigarros de luz, mergulhava no rio e, ao longe, na varanda de um paquete que começava, aos poucos, em pequenas manobras, a aproximar-se de terra, mergulhava e só voltava depois de longas horas de espera, onde cadeiras e mesas já dormiam.

Hoje, ainda hoje, percebo que o poeta que sentado na margem do rio fumava cigarros de luz e o menino que na varanda do paquete via uma cidade imensa a entrar-lhe olhos adentro, eram um só; eu.

Anos depois, a cidade transformou-se num imenso sono de meninos em calções, sobre a mesa, o punhal com que ela numa noite inventada para a ocasião, espetou no peito do poeta, que ontem, sabia onde habitava o velho poema, e hoje, percebe que esse velho, que às vezes, vestido de marinheiro, pede esmola no musseque, deixou de pertencer aos jardins floridos do sonho.

Bebiam-se shots de fumo que apenas o cacimbo sabia onde se escondiam, depois do sexo, porque a cidade, aos poucos, começava a desaparecer do espelho tricolor da madrugada; e depois da chuva, o cheiro intenso da terra queimada. Levantava as mãos a Deus e agradecia por mais um dia que tinha terminado, e ele, ainda, mesmo a muito custo, se encontrava vivo e de boa saúde.

Depois, o velho poeta morreu numa noite de orvalho, mas deixando de acreditar no desejo, sabia que as margaridas que brincavam no jardim do sono, um dia, regressariam a mim. E hoje guardo com amor a pequena sílaba que ele me deixou de recordação e em testamento.

Depois, tínhamos de inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar pequeníssimas flores em papel, e mesmo assim, o puto trocava notas de cem escudos por ninharias que hoje habitam a casa das abelhas em flor.

E sempre que ele cerrava os olhos, via o imenso mar a entrar musseque adentro como o paquete, em pequenos roncos, atravessou o tejo até ao cais de desembarque e desfaleceu sem que ninguém o tenha, até hoje, ressuscitado.

Depois, morreste-me.

Depois, morri nas tuas mãos.

E sempre que invento o sono, vejo um musseque a entrar dentro do meu corpo como se fosse uma flecha envenenada, como se fosse um poema em delírio.

 

 

 

Alijó, 3/07/2022

Francisco Luís Fontinha

A velha sanzala

 

A sanzala, aos poucos, adormeceu na tua mão. O cheiro da voz térrea depois das chuvas, ainda hoje, habita dentro de nós.

Tínhamos no quintal um velho triciclo com assento em madeira que apenas o meu amigo Chapelhudo, quando acordava das noites loucas de Luanda, levava a passear junto à marginal.

As gaivotas suicidavam-se contra os sonhos cansados das tardes de Domingo e, entre Cucas e sombras, o Chapelhudo inventava estórias de adormecer, que apenas as flores do quintal sabiam ouvir e, me transmitiam antes que a alvorada partisse para o Mussulo.

Tínhamos gaivotas em papel; alguma, ainda hoje, brincam na minha mão, como brincam as tuas palavras e o cheiro do teu sorriso.

A sanzala, aos poucos, voava em direcção ao mar, e eu com um velhíssimo cordel, lançava papagaios em papel como anos mais tarde, lancei sonhos para o poço da saudade. O Chapelhudo gostava de passear pelas invisíveis sombras da sanzala como hoje, o menino dos calções faz todas as manhãs antes de adormecer.

Tínhamos medo do mar. o Chapelhudo tinha medo do mar. O velhinho triciclo também ele, tinha medo do mar; e hoje, todos nós amamos o mar, desejamos o mar, brincamos com o mar.

A sanzala, aos poucos, adormeceu na tua mão. O cheiro da voz térrea depois das chuvas, ainda hoje, habita dentro de nós, como habitam as chapas zincadas da Primavera, onde todos os pássaros se enforcam nas ardósias manhãs da infância. Tínhamos as mangueiras que pertenciam ao avô Domingos, depois de um recheado dia a passear machimbombos nas ruas de Luanda. Depois, regressava o silêncio, regressava a morte que hoje, que ontem, nos transportou para o improvável poema que o poeta enforcado deixou esquecido na algibeira; tão pequenino, o meu filho. Tão pequenino!

Mãe, onde fica o mar?

Pai, falta muito?

Luisinho, não tenhas medo do mar…

Sim, mãe!

Sim.

Prometo.

E aos poucos a sanzala, adormeceu na tua mão… como adormecem todos os nomes e cheiros de Luanda.

 

 

Alijó, 3/07/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 2 de julho de 2022

Lágrima de fogo

 

Uma lágrima de fogo desce dos teus olhos envenenados pelo silêncio invisível da maré, junto ao rio da saudade, as tuas mãos semeiam as planícies distantes do infinito, até que um pedacinho de sorriso, quase a desfalecer, brota do teu amargo desejo em partir; não sabíamos que os barcos da nossa infância se tinham suicidado debaixo da ponte.

Ao longe, separados pela equação do adeus, a lágrima de fogo ainda consegue respirar, está viva, ama, chora e,

Depois,

Desce dos teus olhos envenenados pelo silêncio invisível da maré.

Na algibeira, os barcos transportavam flores em papel e outras coisas mais. Do outro lado da ponte, uma fotografia corria em direcção ao mar, como os cabelos quando a timidez aparece durante a noite e, sem percebermos, as velhas papoilas do nosso jardim respiravam como que se estivessem a solicitar o eterno descanso; até agora, nada.

Nada vezes nada. O zero alimento que separa a razão do sono.

Sonhávamos com as nuvens de Inverno. Sabíamos que sobre as árvores do quintal o homem da bicicleta brincava com todos os sorrisos da aldeia, sabíamos e não o desejávamos, porque no peito, o homem da bicicleta transportava os olhos da madrugada, porque não tínhamos o silêncio permanentemente, como os pássaros o têm durante a noite.

Até agora, a lágrima de fogo, dirige-se para os tímidos cabelos que aos poucos voaram como voam os Sábados à noite, depois de emergir no poço da vaidade. Até agora, a lágrima de fogo brinca no teu sorriso e, ainda permanece na tua inocência, como permanece na tua inocência a tempestade dos algoritmos nocturnos do poema.

As flores, morreram.

As pétalas que sobreviveram, hoje, vagueiam como zumbis nas ruas da cidade.

Uma lágrima de fogo desce dos teus olhos envenenados pelo silêncio invisível da maré, junto ao rio da saudade, as tuas mãos semeiam as planícies distantes do infinito, até que um pedacinho de sorriso, quase a desfalecer, se abraça a mim e,

Despediste-te de mim como se despendem as andorinhas após a fuga da Primavera.

 

 

Alijó, 2/07/2022

Francisco Luís Fontinha

Nuvem adormecida

 

Não saíamos onde habitavam os sonhos.

Tínhamos na mão, depois da tempestade,

Todas as palavras envenenadas pelo silêncio e,

Mesmo assim, pertencias aos velhos muros em xisto,

Onde pequenos pássaros em papel…

Dormiam depois de regressarem do luar.

 

Erguia-me.

Perante o altar da solidão,

De punhos cerrados ao vento,

Suplicava que as minhas palavras,

Que os riscos que deixava no chão,

Partissem em direcção ao mar,

 

Como fazem todos os rios.

Depois, talvez em frente ao espelho,

Cruzava os braços,

Puxava de um cigarro invisível…

Sabendo que ontem, depois da chuva,

Partiram os teus cabelos de nuvem adormecida.

´

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 02/07/2022

sábado, 25 de junho de 2022

Sono transverso

 

Não tínhamos dentro de nós

O sono transverso do silêncio,

Não tínhamos o pão,

Não tínhamos as palavras que hoje semeio…

Não tínhamos nada,

Não tínhamos medo.

 

Não tínhamos as lágrimas que hoje crescem

Sob a sombra infinita da solidão,

Não tínhamos as nuvens,

Não tínhamos este rio que nos abraça,

Que nos beija,

Não tínhamos estes velhos

 

E cansados socalcos.

Não tínhamos o desejo

Que habita nesta insignificante pedra,

Não tínhamos o vento

Que nos embala…

Não tínhamos uma espingarda

 

Que disparasse o prometido pão.

Não tínhamos a fome,

Não tínhamos a lareira que o corpo consome,

Não tínhamos nada…

Não tínhamos tempo

Que hoje nos enforca,

 

Que hoje nos levanta

Deste chão envenenado.

Não tínhamos o poema,

Não tínhamos os livros que hoje temos…

Não tínhamos a espingarda,

Não tínhamos o texto embriagado

 

Pelo cansaço da manhã.

Não tínhamos as lágrimas,

Não tínhamos o silêncio

Das eiras em construção;

Não tínhamos nada,

Nada que hoje temos.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 25/06/2022

sexta-feira, 24 de junho de 2022

A paixão dos barcos

 

Não sabíamos que da paixão dos barcos,

Um dia, hoje,

Cresceriam nuvens de saudade e,

Pedacinhos de neblina,

 

Fina simplicidade do cansaço,

Quando na tua face, ontem, brincavam as lágrimas do silêncio.

Não sabíamos que da paixão dos barcos,

Um dia, hoje,

 

O teu cabelo voaria em direcção ao mar,

Entre rochedos e sombras,

Entre papéis ensanguentados pela solidão,

Que hoje,

 

Que hoje são palavras na minha mão.

Não sabíamos que da paixão dos barcos,

Hoje,

Crescem nuvens de saudade e,

 

Algumas fotografias sem nome.

Hoje, ontem, amanhã…

O Sábado indefinido

Que adormece em ti,

 

Em mim, perdedor das marés,

Cancioneiro da tristeza;

E assim, acredito que as tuas cinzas

São barcos. A paixão dos barcos.

 

 

Alijó, 24/06/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 20 de junho de 2022

A casa poema de sonhar

 

Verde são estes olhos de dormir

Enquanto há palavras na fogueira,

Verde são os poemas de amar,

São as lágrimas de chorar;

Verde são as noites sem dormir,

São as noites junto à ribeira…

Verde são as ondas do mar

Que brincam na lareira.

 

Verde é a solidão

Sob o tórrido silêncio de escrever,

Verde é a palavra envenenada

Que tento adormecer na alvorada.

Verde sentido só possível neste coração…

Verde as nuvens do entardecer,

Que escondem socalcos enxada,

Como se o universo fosse morrer,

 

Como se o universo fosse verde aldeia.

Verde cansaço madrugar,

Que escondo no Ujo luar,

Verde que sofre, verde das almas roubadas,

Verde alegre das lágrimas semeadas.

Verde são os olhos de chorar,

Verde são os versos das janelas arrombadas

Na casa verde, na casa poema de sonhar.

 

 

Alijó, 20/06/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 19 de junho de 2022

Das pequenas árvores do sono

 

Assim que acordávamos, ouvíamos o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite; o cabelo tinha-se-lhe esvoaçado, como as árvores quando se despem para dormir.

O sono levava-a e trazia-lhe o desconsolo de viver acorrentada a uma sombra que alguém tinha trazido da longínqua Angola, na algibeira do avental, algumas palavras despregadas do uivo dos mabecos envenenados pelos sonhos de uma madrugada recheada de pequeníssimos papeis onde habitavam frases de revolta e agonia.

Ouviam-se os pássaros nas ardósias manhãs de Verão, junto ao mar, ou mais longe do que isso, os barcos de cartolina regressavam de mais uma viagem ao infinito; as equações do sono também, por vezes, se faziam acompanhar pela solidão do capim onde se escondiam algumas gaivotas que procuravam as cinzas da tarde. Sabia que um dia, também o seu próprio cabelo, seria a madrugada travestida de sono, que muito mais tarde, se suicidaria junto à baía. Tínhamos medo da noite. Tínhamos medo do sofrimento que depois da tarde se despedia do silêncio que a cada segundo que passava, que a cada minuto de sofrimento, aparecia à janela do cansaço.

Sabíamos que os cabelos eram apenas pequenas sombras que todos os dias iam ao rio em busca da primeira lágrima da manhã. Um dia, junto ao mar, cresceu uma pequeníssima lâmina de sangue, uma ferida que ainda hoje sangra, que ainda hoje dorme numa cadeira que ainda hoje inventa sorrisos no espelho da sanzala.

Assim que acordávamos, ouvíamos o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite, todos os barcos tinham no olhar um enorme sofrimento que aos poucos dava à costa e contra os rochedos se transformavam em tiras de sono. O corpo começava a desfalecer. O corpo começava em putrefacção e o intenso cheiro a gladíolos era tal que quase adivinhava-se o silêncio que hoje pertence aos grandes petroleiros da cidade.

A cidade envelhecia. O corpo, sangrando como uma velha fonte da aldeia, tinha nas mãos as cinzas dos ossos desfigurados pelos comestíveis cogumelos que só os poemas conseguiam construir no profundo mar das marés em delírio; o corpo sangrava porque existia sobre a pele a fragância laminada de uma tempestade perfeita, depois, eram as cadeiras da cozinha em pequenos gritos que apenas eram sentidos pelos velhos azulejos que numa qualquer sexta-feira alguém deixou ficar debaixo da árvore junto à porta.

Do cabelo, alguns silêncios despertavam. A tinta que às vezes escorria no seu rosto era o principal motivo de se esconder no quarto e desligar o interruptor do sonho que trazia junto ao peito. Todos os brancos cabelos que ela tinha um dia tinha prometido ao criador, hoje eram apenas vestígios de lágrimas e silêncios.

Sabia-se que a morte tinha descido à velha cidade.

Os cabelos brancos tinham, finalmente, encontrado a liberdade.

E do cabelo, alguns silêncios despertavam…

 

 

Alijó, 19/06/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Árvores sonâmbulas

 

Sabíamos que das árvores sonâmbulas

Acordavam os gritos faminto da fome,

Empenhando a bandeira sem nome

Que todas as tardes, dormia junto ao rio.

 

Sabíamos que das tuas palavras

Se erguiam os corações de prata,

Pedaços de lata

E pequenas andorinhas da madrugada,

 

Enquanto lá fora, sem percebermos

Porque morriam os poemas amanhecer,

Havia sobre a mesa uma pequeníssima folha onde escrever,

Havia o grito da noite,

 

Sabíamos que das árvores sonâmbulas,

Algumas delas, envenenadas pelo silêncio da alvorada,

Descia das mangueiras uma manga cansada,

Uma manga enraivecida,

 

Porque dentro de nós,

Adivinhava-se a tempestade do feitiço, primitiva

Equação em desejo. Porque dentro de nós existia o sono

Travestido de tédio.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 16/06/2022

Uma Bedford amarela, um machimbombo e roupas que apenas o “chapelhudo” vestia em noites de poesia nas noites de luar,

 

Tínhamos na algibeira a silenciada espada do silêncio; porque morrem os pássaros, mãe?

Não sabíamos que dentro dos corações de veludo, alguns deles, tristes e sós, habitavam nuvens de prata e palavras camufladas pela solidão das manhãs em que eu, menino de colo, brincava na areia branca do Mussulo.

Que saudades, mãe!

Do Mussulo?

Não, pai, não…

Dos papagaios em papel invisível que a mãe construía sem conhecimentos de física, matemática ou aerodinâmica,

E a Bedford, pai?

Que tem, filho?

Morreu num dia de chuva, como hoje.

Voava em direcção ao sol, depois, num ápice, escondia-se sob a inflamada escuridão das manhãs sem sono. Até as mangueiras tombaram no chão lamacento, depois das trovoadas que quase sempre traziam pedacinhos de tristeza, que quase sempre traziam envenenadas palavras, que hoje escrevo na tua mão.

E o menino do triciclo e dos calções?

Não sei, mãe, não sei porque brincavas comigo e juntos contruíamos vestidos para o “chapelhudo”, mas depois do sono, quase sempre, vinha até nós a madrugada travestida de socalcos que só o nosso Douro lança sobre as tempestades de saudade que de vez em quando caem sobre os meus ombros, frágeis, muito frágeis.

Depois, aparecia o avô Domingos com um cordel na mão que servia para puxar o machimbombo que todos os dias passeava nas ruas de Luanda. Depois, vinha o meu pai com a Bedford amarela, tão cansada ela, tão cansada,

Que o menino do triciclo e dos calções abraçava sem perceber que hoje, que hoje não Bedford amarela.

Tínhamos na algibeira a silenciada espada do silêncio; porque morrem os pássaros, mãe,

Porque voam os pássaros, mãe?

E sabíamos que um dia, hoje, as palavras são flores que habitam o meu jardim em papel e, talvez, quem sabe, na tua lápide, deixe um poema, um beijo numa acrílica tela ou

Porquê, mãe?

Ou sejam os sábados prisões de almas, sombras, ou sejam apenas pequenos nadas das palavras, tuas, quando embarcaste nessa viagem sem que o mar recordasse o Mussulo encaixilhado numa janela com fotografia para o rio.

Uma Bedford amarela, um machimbombo e roupas que apenas o “chapelhudo” vestia em noites de poesia nas noites de luar.

E a Bedford, pai?

Que tem, filho?

Morreu num dia de chuva, como hoje.

 

 

Alijó, 16/06/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 4 de junho de 2022

Planície do desejo

 

Percebo que a planície do desejo

É apenas uma equação em delírio,

É uma estrutura envenenada

Pelo vento madrugada;

Percebo que a planície do desejo

É uma contante cansada,

É uma pedra em movimento,

É a sombra na calçada.

 

Percebo que nas tuas mãos

Brincam os pássaros em papel

Que o destino deixou ficar;

Percebo.

Percebo que esta planície do desejo

É a palavra amar…

É apenas vontade de viver.

Percebo.

 

 

Percebo que na planície do desejo

Habitam os teus lábios em combustão,

Habita a palavra, habita o solstício de Verão

Quando ao longe, do mar, vem o meu esqueleto…

Percebo que na planície do desejo;

Também habitam os meus poemas de merda.

Habitam os meus desenhos de merda.

Também habita o teu olhar sereno, também habitam as tuas mãos de amar.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 04/06/2022

sábado, 14 de maio de 2022

As escadas da tristeza

 

Descíamos as escadas da tristeza

Sob a ténue luz do desejo,

Depois,

Vinha a nós,

A ribeira da tempestade,

Conforme as imagens do silêncio,

Conforme as lágrimas do teu rosto,

Antes do enforcamento das palavras,

 

Antes do suicídio do poema.

As rosas eram em papel-lágrima,

Com as bocas da fome

Correndo calçada abaixo,

Até se afogarem no rio da saudade.

Descíamos as escadas da tristeza

Carregados de cansaço…

Carregados de maldade.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 14/05/2022

domingo, 8 de maio de 2022

A calçada

 

Descia a calçada descalça

Dentro da sombra imanada da solidão,

Descia a calçada envenenada

Pelas rosas do meu jardim,

Descia a calçada descalça

Acompanhada pelo perfume do Verão,

Descia a calçada cansada,

Cansada de tanta paixão,

 

Descia a calçada das estrelas

Como se o sopro da manhã

Se levantasse do chão;

Descia a calçada madrugada

Enquanto o enforcado poeta

Escrevia na mão…

Enquanto a desgraçada calçada

Morria de paixão.

 

Descia a calçada descalça

A menina das planícies além-mar,

Trazia um barco suspenso na saia

E um marinheiro acorrentado aos lábios…

Descia a calçada descalça

A menina luar,

Sem perceber que esta calçada

É apenas um pássaro de voar.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 08/05/2022

terça-feira, 3 de maio de 2022

Beijos ensonados

 

Dos beijos ensonados

Às sílabas envergonhadas,

Dos pássaros cansados

Às tristes madrugadas,

Dos montes mimados

Às tardes revoltadas…

Da triste saudade

À misera esperança sem nome;

Do vinho martelado

Às poucas cartas que enviei,

 

À verdade,

À fome,

Ao poema que assassinei…

Do meu corpo enforcado

Às lágrimas que chorei,

Do vento,

Da solidão

E de todo o sofrimento…

E de todo o pão.

À chuva miudinha de Luanda,

 

Aos cheiros do amanhecer,

À fogueira…

Às espingardas sem coração.

Ao samba,

Ao prazer,

Ao uísque a bebedeira

Quando a noite parece esquecer,

Quando a noite parece morrer…

E o poeta dos beijos ensonados

Acredita em versos de dizer.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 03/05/2022

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Lágrimas em flor

 

As palavras que te escrevo,

Nas páginas da tua mão,

São rosas, são flores,

São grito de canção.

As palavras que te escrevo,

Nos lábios da madrugada,

São incenso,

São silêncios de nada.

As palavras que te escrevo,

Na alegre manhã de liberdade,

São alegria,

São voos de saudade.

As palavras que te escrevo,

Em ti, meu amor,

São a chuva miudinha,

São as lágrimas em flor.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 25/04/2022

sábado, 23 de abril de 2022

Cinzeiros amordaçados

 

Tínhamos o céu,

Tínhamos as gaivotas junto ao mar,

Tínhamos no silêncio o véu,

O véu de chorar,

Tínhamos a montanha doirada,

Tínhamos as palavras de escrever,

Tínhamos tudo ou quase nada,

Nada para comer.

Tínhamos um rio selvagem,

Que poisava, durante a noite, na nossa mão,

Tínhamos medo da viagem,

Da viagem sem coração,

Tínhamos poesia, palavras envergonhadas,

Tínhamos nos livros de amar,

Todas as madrugadas,

E… tínhamos o cansaço do mar.

Tínhamos lápis para riscar,

As paredes da solidão,

Tínhamos vontade de gritar,

Nós queremos é pão.

Tínhamos a saudade travestida de amanhecer,

Tínhamos muitos barcos de brincar,

Tínhamos vontade de correr,

De correr e gritar.

E tínhamos o silêncio no nosso peito.

Tínhamos espingardas de papel,

Tínhamos um barco sem jeito,

Que puxávamos com um cordel.

Tínhamos alegria,

Tristeza,

Tínhamos a fantasia,

No desejo em beleza,

Quando tínhamos no sonhar,

O perfume de uma flor,

Quando trazíamos do mar,

Silêncio e dor.

Tínhamos a vaidade de crescer,

Sob os pincelados beijos de arenato,

Tínhamos as nuvens a morrer

Nas lágrimas de um regato.

Tínhamos a paixão,

Tínhamos as sandálias do pescador,

Tínhamos sempre na mão,

Uma e linda pobre flor.

Tínhamos sanzalas em prata

E cinzeiros amordaçados,

Tínhamos sonhos de lata,

E tínhamos os filhos envergonhados.

E tínhamos a fogueira…

E tínhamos a canção…

E não tínhamos maneira,

Maneira de dizer não.

Hoje, não temos nada,

Hoje apenas uma fotografia junto ao mar…

Hoje, apenas a madrugada

E a vontade de voar.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 23/04/2022