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domingo, 23 de julho de 2023

Retracto

Olho o teu retracto

E olha…

Quem diria

Estás com muito bom aspecto

E até pare que os anos não passaram por ti.

 

Olho o teu retracto.

Escondo no teu retracto, o meu retracto

Um qualquer

Pode ser no Mussulo

Pode ser aqui

Ou ali.

 

Olho o teu retracto

E olha…

Quem diria

Parece que os anos se esquecem de ti

E se lembram de mim.

 

Olho o teu retracto

E confesso-te

Que começo a odiar o teu retracto

E todos os meus retractos.

 

Olho o teu retracto

E não vejo nada

Nem um sorriso disfarçado

Tão pouco

Os segredos da madrugada.

 

Olho o teu retracto

E vejo o meu rosto abraçado a um baloiço

E enquanto me transmites a força necessária para eu voar…

Eu olho o teu retracto

E no teu retracto

Escuto os silêncios do mar.

 

 

 

23/07/2023

Luís

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O prometido beijo

 

Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido. Tínhamos dentro do corpo o silêncio que a noite depositou junto à praia das areias brancas. Ouvíamos o uivo dos lobos que regressavam da montanha, olhavam-nos e sentavam-se junto a nós.

Pegava num pequeno livro de poesia e lia-lhes poemas dispersos, diga-se, apenas os lobos a percebiam. Puxava de um cigarro embrulhado em solidão e, permitindo aos olhos alguma lubrificação, pequenas lágrimas de incenso se despregavam do rosto e acabavam por morrer no pavimento íngreme da eira.

Estava sol. Dentro dela, sem o saber, crescia um pedacinho de ninguém, uma coisa de milímetros, como se fosse apenas mais um poema. Havia gaivotas à nossa volta, num dos retractos, aparecia uma nuvem de pura lã virgem, que em pequeníssimos círculos, se dirigia para o mar. Talvez depois de acordar, esse minúsculo ser fosse apenas um fio de nylon esquecido num qualquer sonho, de uma qualquer manhã, sem remetente.

Desciam os pássaros o musseque. Uma Bedford amarela, puxada por um pequeno cordel, inventava ruelas e caminhos térreos, logo que depois, aparecia o velho Alberto e, nunca dando o ar da sua graça, lamentava-se da poeira causada pela mesma. O sonho, condutor da dita Bedford amarela, nunca se cansava do árduo trabalho, e de vez em quando, num pequeno caderninho, apontava cada silêncio que lhe aparecesse pelo caminho.

Eram chuvas sem medida.

Chegava a casa e, sobre um pedaço de ferro e zinco, um menino esperava-o; e todos os dias, ao final do dia, o menino recebia o prometido beijo, diga-se que, nunca era igual; o de ontem não é igual ao de hoje e, o de hoje jamais será igual ao de amanhã. Há quem lhe chame de amor, mas o menino, chamava aos beijos de: pedacinhos de insónia, camuflada pelo perfume das acácias.

Pela manhã, erguiam-se todos os pássaros e acordavam todas as flores, dos pequenos charcos que restavam da tempestade anterior, poucos ou nenhuns já existiam; quase todos eles, mortos.

Voávamos entre a sombra do desejo e o beijo adormecido e, acreditávamos que o dia seguinte, aquele que ainda não existia, certamente ia ser melhor do dia que estava prestes a terminar. E assim, aprendi a enganar os dias, e ainda hoje o faço, até que um punhado de flores tombem sobre o meu corpo e, uma gaivota voe em direcção ao mar.

Eis o teu retracto.

Eis a tua morada.

Porque eram chuvas sem medida.

 

 

 

Alijó, 06/02/2022

Francisco Luís Fontinha