Depois, tínhamos de
inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar
pequeníssimas flores em papel, diga-se; tínhamos trazido da antiga ilha da
solidão todos os leitos do amor proibido. Nas ruas da cidade, ouviam-se os
gritos dos cacilheiros que durante o dia transformavam o tejo em pequenas
estradas de transeuntes e, sob o viaduto em Cais do Sodré, putas finas
guerreavam-se por cinquenta escudos.
O sono, que de algibeira
em algibeira, de lapela em lapela, desenhava-se no pavimento lamacento em
pequenas vozes sinusoidais e ao fim de alguns gritos e gemidos, acabava sempre
por regressar a uma Belém envenenada pelos putos em busca de sexo e depois de
alguns escudos, escondiam-se rio adentro como que crianças em fuga da
literatura que nesta ou naquela rua, se vendia a preço de saldo.
Uma noite mergulhei no
poema da saudade, acreditando que depois do sono, acordarias sobre as lâminas
do medo, mas mal visto, nada poderia na altura vaticinar que as janelas do teu
olhar, hoje, sejam apenas cacos e pequenas migalhas.
O poema, às vezes,
enquanto o poeta fumava cigarros de luz, mergulhava no rio e, ao longe, na
varanda de um paquete que começava, aos poucos, em pequenas manobras, a
aproximar-se de terra, mergulhava e só voltava depois de longas horas de
espera, onde cadeiras e mesas já dormiam.
Hoje, ainda hoje, percebo
que o poeta que sentado na margem do rio fumava cigarros de luz e o menino que
na varanda do paquete via uma cidade imensa a entrar-lhe olhos adentro, eram um
só; eu.
Anos depois, a cidade
transformou-se num imenso sono de meninos em calções, sobre a mesa, o punhal
com que ela numa noite inventada para a ocasião, espetou no peito do poeta, que
ontem, sabia onde habitava o velho poema, e hoje, percebe que esse velho, que
às vezes, vestido de marinheiro, pede esmola no musseque, deixou de pertencer
aos jardins floridos do sonho.
Bebiam-se shots de fumo
que apenas o cacimbo sabia onde se escondiam, depois do sexo, porque a cidade,
aos poucos, começava a desaparecer do espelho tricolor da madrugada; e depois
da chuva, o cheiro intenso da terra queimada. Levantava as mãos a Deus e
agradecia por mais um dia que tinha terminado, e ele, ainda, mesmo a muito
custo, se encontrava vivo e de boa saúde.
Depois, o velho poeta
morreu numa noite de orvalho, mas deixando de acreditar no desejo, sabia que as
margaridas que brincavam no jardim do sono, um dia, regressariam a mim. E hoje
guardo com amor a pequena sílaba que ele me deixou de recordação e em
testamento.
Depois, tínhamos de
inventar o sono. Enganávamos a noite construindo nas paredes do luar
pequeníssimas flores em papel, e mesmo assim, o puto trocava notas de cem
escudos por ninharias que hoje habitam a casa das abelhas em flor.
E sempre que ele cerrava
os olhos, via o imenso mar a entrar musseque adentro como o paquete, em
pequenos roncos, atravessou o tejo até ao cais de desembarque e desfaleceu sem
que ninguém o tenha, até hoje, ressuscitado.
Depois, morreste-me.
Depois, morri nas tuas
mãos.
E sempre que invento o
sono, vejo um musseque a entrar dentro do meu corpo como se fosse uma flecha envenenada,
como se fosse um poema em delírio.
Alijó, 3/07/2022
Francisco Luís Fontinha