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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Árvore feiticeira

 

Dentro de ti, a silenciada espada do amanhecer, os solstícios do desejo, quando acorda o luar e, sem o perceberes, lança-te às estonteantes palavras que semeio na alvorada. Uma das portas de entrada, aquela em que é visível a madrugada, voa sobre o infinito céu um pedacinho de nada, do outro lado do quintal, nas traseiras junto ao muro, habita o poço desprovido de luz, apenas mais um buraco, como tantos outros; negro.

O poço negro acorda. Ergue-se e, depois da sua higiene diária, toma o pequeno-almoço nas sombras da tela pintada na noite anterior. Do pincelado negro, observa-se na tela um pedacinho de saudade, não muita, mas percebe-se que está lá; assim seja, como todos os poemas excluídos do grande livro, como todas as abelhas, extintas na neblina.

Dentro de ti, as paisagens imaginadas numa noite sem sono, dentro de ti, todas as alvoradas que estão para nascer, que vão nascer, como se fossem mais um filho, como se fossem mais uma desculpa para adormecer.

E, no silêncio desejo, acorda o abraço. O ingreme corpo, que te pertence, saltitando entre a pilha de livros, junto à janela, e a árvore feiticeira, aquela onde brincam, durante a noite, os teus gemidos.

Desce sobre nós o infinito e, de régua e esquadro, o homem de bata branca traça pequenos triângulos, rectângulos e círculos de luz.

Um dia, um dia percebi que tinha sobre mim um círculo com olhos verdes; porquê verdes? Porque sim, apenas.

Era um calmeirão de um círculo, trazia na algibeira uma pequena caixa de fósforos e um cinzeiro, depois, muito mais tarde, percebi que ele era eu; hoje.

Vivíamos junto ao aeroporto. Logo que abri os olhos, depois de estar em casa, habituei-me a olhar os pássaros que logo em seguida poisavam numa pista inventada pelo sono: porque choras!

Dentro de ti, as pequenas parcelas sombreadas de um velho espantalho, sentado no meio do trigo e, quando vinham os pássaros, estes mesmos homens de trapos, vacilavam; não percebiam se deveriam disparar a espingarda do sono, ou correr em direcção a eles. Quase sempre, ou sempre, desistiam de viver.

Como desistem os gemidos que habitam na árvore feiticeira.

 

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 04/02/2022