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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

As sílabas voláteis da paixão

Coitado, que antes de se finar dizia ser doutor em pornografia e vão de escada, de dia, era bancário, e quando começava a acordar a noite, a noite para ele era o clímax da mulher que vivia dentro dele, e quando começava a acordar a noite, entrava em casa, despia o fato, suspendia a gravata no cabide adjacente à porta de entrada, e
Estás despedido, parvalhão,
Depois de se confrontar com o espelho do guarda-fato e completamente nu, começava a metamorfose, e aos poucos, nascia a menina dona Marilú, Rainha da noite, e que às terças e quintas dançava em cima de uma mesa num bar em Cais do Sodré, um dia, assisti
Estás bem mano?
Nem que sim, nem que não, assisti a um dos seus espectáculos, talvez o mais emblemático da sua pequena carreira, porque para mim, foi o primeiro e o último, ele era realmente linda, mas um grandessíssimo parvalhão,
Hortênsio? Hoje, sussurras-me palavras mágicas que ontem deixei cair sobre as sílabas voláteis da paixão incandescente que provoca na madrugada, sempre que há uma madrugada visível aos olhos das luas sem destino, uma sapiência desumana, suja, imunda, clandestina às vezes, prosaica, outras, nem por isso, as cabeças
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Porquê
Hortênsio?
Que amanhã era domingo, que amanhã os dias deixavam de ser preenchidos por vãos de escada e sótãos, que amanhã
Eu, o Hortênsio, o irmão do António, e ele deixou de aparecer, e ele evaporou-se completamente como se o sol o absorvesse, ou como se fosse comido por um monstro marinho, um petroleiro com asas de vinil, livros encadernados a couro e completamente abandonados, como eu, num sótão, hoje, que me sinto tristemente só, hoje que nem sou o Hortênsio e nem idade tenho para ser a Marilú, hoje
Morri,
Porquê
Hortênsio?
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Nunca o soube,
E a morte quase sempre vinha vestida de Primavera, chegava docemente, despia-se, e deitava-se na levemente beleza das palavras não prenunciadas, abraçava-o, afagava-lhe o pouquíssimo cabelo que lhe restava, dava-lhe a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
E eu, o irmão do António, nunca tive medo, nunca,
Dava-me a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
Nunca meu amor,
E começávamos a flutuar em direcção ao céu nocturno das caves sem janelas
E depois?
O Tejo deixava de se ver.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó