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segunda-feira, 18 de abril de 2016

Retracto sem ninguém


Cai o sono sobre a alvorada; não tenho pressa de caminhar.

Imagino os ossos das tempestades invisíveis poisarem sobre os meus ombros enforcados no levante amanhecer, imagino a límpida água dos sonhos sobrevoando as minhas mãos,

Cai o sono e sou forçado a desistir.

Habita a paixão na adolescência dos cacos envergonhados,

Abraço-te, beijo-te, alimento-me da tua sombra que traz a noite das clarabóias de papel, um barco atravessa-me e tombo junto ao cais; a morte.

Os infelizes corações de prata encalhados nos rochedos da Aurora Boreal da loucura, o sino da aldeia encostado ao zimbo sombreado do sofrimento, tinhas-me medo, ausentavas-te do meu corpo como uma corda de nylon,

Cai o sono, levanta-se no horizonte uma fina película de dor, pertencias aos pássaros envenenados pelo luar,

E hoje és apenas um retracto sem ninguém.

É tarde, meu amor,

Hoje não andam machimbombos nas ruas da amargura,

O capim das palavras arde junto às cubatas recheadas de infortúnio,

Crianças enlameadas jogam ao futuro como se o futuro fosse um jogo, um desejo não concretizado, mesmo assim, morrem como pássaros no Inverno,

Cai a noite e o sono da noite,

Cai o sonho e o sonho da noite,

Cerro todas as janelas e portas, fico encurralado das tuas garras, lá fora, esperam-me os cartazes da revolta,

O destino meu não saber onde vou dormir hoje.

É tarde,

A lua parece um ponto esquecido no Céu,

Como todas as partes do meu corpo; ponto de luz esquecidos no Céu.

Cruzo os braços, socorro-me dos cigarros para alimentar o medo da tua ausência, mas não consigo sobreviver à chuva, ao vento…

Não te procuro mais neste aldeamento de porcelanas sem remorsos, não te procuro mais nesta leviana cidade de bares e ruelas sem nome,

É tarde, é tarde e nada tenho na algibeira.

Olho-me no espelho da poesia, pareço triste, pareço um pequeno farrapo em busca do fogo, uma faca atravessa-me e sei que morre também em mim a poesia,

Sinto-o como se fosse hoje,

Sinto-o como se fosse agora,

Este cais de barcos enferrujados onde deixo ficar a minha pobre algibeira, fumo os cigarros da noite enquanto lá dentro bebem, comem…

E eu, e eu fumo o último cigarro do poema,

Há marés de vidro que cortam os meus pulsos,

O sangue jorra como se fosse o rio das palavras enlatadas pela insónia,

Há marés de vidro no meu coração,

Há marés de vidro no meu olhar,

Que me cega, que me faz ausentar de ti…

É tarde, meu amor, e amanhã não te procurarei mais, nunca mais.

 

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 18 de Abril de 2016

domingo, 16 de junho de 2013

Não percebo agora o significado da desordem...

foto: A&M ART and Photos

Se dançávamos? Tínhamos acabado de regressar da longínqua sanzala de vidro com cubatas revestidas em saudade e pedacinhos de medo, aquém e além, uma voz fria gritava-nos, e arremessava-nos pedras invisíveis, e eu criança, envergonhado porque não entendia os orgasmos em sombras de café que os adultos deixavam esquecidos nos bancos do jardim, uma penumbra manhã perdi o esqueleto de mim, e de dentro do guarda-fato, divertia-me a pincelar tons mastigáveis na solidão de uma casa pequeníssima, com cinco janelas, e uma chaminé, e durante a noite ouvíamos as lágrimas sorrido parede abaixo... até se derramarem no soalho embrulhado em humidade e caruncho, que em alturas de desassossego, ouvem-se, ouvem-se em pequenas festas como fazíamos quando vivíamos na cidade dos desejos e dos sonhos e dos pequenos mares que entravam em nós, e nunca, nunca mais nos abandonavam,
Voltar?
Se dançávamos, não percebo agora o significado da desordem...
Voltar, em vez de descer, subir, sentar-me sobre o telhado, e ouvir a conversa dos pássaros nas tertúlias tardes dentro das mangueiras, debaixo delas, duas crianças experimentavam a força utilizando um cordel fino, tão fino como o cabelo castanho do velho Domingos, Voltar? Não percebo a desordem dos meus braços, não percebo a rouquidão da minha voz, e... principalmente, tu existes dentro de uma lata de conserva, vestida com um lindo vestido em papel verniz, colorido, e quando chove, ouvem-se-te em pequenas chamas de luz os batimentos de um coração apaixonado, Voltar... nunca, jamais, para quê e porquê?
Se dançávamos? Às vezes...
Voltar e não encontrar as ruas onde as tínhamos deixado, durante a noite, homens, mulheres e algumas crianças, utilizando a única força disponível, mudaram de local todas as ruas da cidade, o mar, hoje, já não está lá, lá, hoje, está um campo de milho que perdemos no horizonte enquanto observamos, e onde havia, antigamente, campos de milho, está lá, hoje, o mar, só, sem ninguém a chapinhar na água salgada e na areia branca, e ninguém nos avisou, e dizem-nos que até a nossa casa mudou de sítio, deslocou-se avenida abaixo, e foi literalmente engolida pela fome, e pelo ódio...
Porquê regressar! Se dançávamos? Olho-me no espelho e vejo o rosto, o meu rosto de menina, de mulher apaixonada, desiludida com as manhãs quando desapareces de mim e ficas só entre papeis velhos e outras fotografias, tão velhas, tão... imagens sem significado, oiço-me de encontro ao espelho, reflecti-me
Evaporaste-te através dos orifícios que sobejavam na cubata, espetávamos pregos sobre um velha carica, servia para isolarmos o mesmo orifício da humidade e dos espíritos malignos dos retratos semeados sobre a mesa-de-cabeceira, raramente conseguias segurar-te e acabavas por tombar sobre o passeio em cimento, dos joelhos, pequenos riscos, cromados gelatinosos aos morangos de um dos canteiros ainda não destruído pelo canino REX,
E porquê se me reflecti num espelho com coração de xisto, dele conseguia-se ver o rio e os socalcos encurvados por carris que nos transportaram até hoje, aqui, à sombra de uma velha cubata, esquecidos na sanzala trémula, vagueando como imagens no lençol nocturno onde brincávamos antes de nos deitarmos, era noite, e o teu rosto imagina-se liberto das minhas mãos, e o teu rosto... também ele, como as ruas e as casas, mudaram-nos de sitio, e hoje habita numa outra cubata, numa outra sanzala... num outro País de sonhos desencantados, falsos sonhos, de um falso espelho; tu
Se dançávamos?
Todas as noites, tu é que não te recordas de mim, da música, e das árvores e dos candeeiros suspensos no tecto do céu...
Claro, claro que dançávamos...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 24 de abril de 2013

As cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha...

foto: A&M ART and Photos

Eu pensava que os dias eram pequenos aeroplanos sobrevoando as cubatas da saudade e os musseques com homens de pano, com mulheres de palha, com meninos em forma de triciclo, e sempre que me erguia, ouvia, sentia, vinha até mim uma nuvem encarnada com olhos verdes, sobre ela, brincava um menino com um papagaio de papel e de cor amarelo, e eu sem saber o que fazer, puxava o cordel, e caía o céu sobre nós, as estrelas transformaram-se em papeis tão finos e pequenos que,
mal se conseguiam observar quando atingiam o pavimento térreo do largo dos morcegos nocturnos, havia mãos entrelaçadas, havia suspiros misturados em suor e lábios diluídos em pequenas bocas de sobremesa, depois do jantar, o cigarro perfumado, construído devidamente para o efeito, e uma borboleta em batimentos de asa fazia com que no terceiro andar direito, onde apenas dormia a minha vizinha Amélia, caíssem todos os objectos que jaziam sobre a cristaleira, coisa estranha, a minha, a vida de mim, como as mãos de ti penduradas nas mãos de ela, e claro que nas mãos dela, mas hoje, a mim, apetece-me escrever “nas mãos de ela”, e das mãos de ela
Nasceram pássaros, pequenos objectos em puro cristal, pratos em porcelana, barrigas de aluguer, flores de papel e janelas com cortinados de vidro e no lugar dos vidros, pequenos quadrados de tecido, de preferência, escuro, preto, assim, quase nunca se nota a sujidade, e nas tascas perdidas pela cidade, uma finíssima toalha em plástico ornamentava uma mesa caquética, que quando se pegava nos talheres, e como às vezes, estes, eram tão finos que se dobravam sobre o próprio estômago de aço, e tínhamos de recorrer às nossas mãos para dilacerar meio frango no churrasco em menos de quinze minutos, e era nessas alturas que sentíamos a mesa em pequenos tremores de terra, depois iam aumentando... até o líquido dos copos do jarro de alumínio, se derramar, e aos poucos, caminhar sobre a horrenda decoração estampada na toalha de plástico, e era quando vinha a menina Joana, trazia sempre um pano entalado entre a cintura e o cinto que segurava-lhe as calças de ganga, que nós fazíamos apostas para adivinharmos de que cor era, e como sempre, eu perdia, porque nunca acreditei que ela tivesse a cintura esbranquiçada, como eu tenho todo o meu corpo, e o restante, fosse num tom castanho com sílabas de madrugada, e o frango, como sempre, uma delícia...
e de mãos dadas lá íamos caminhando solenemente junto ao mar, nuas, sem pudor ou medo que o feitiço da paixão e do prazer provoca nas pessoas, nas flores, ou mesmo nos pássaros, e um dia pensei como seria uma cena de amor entre duas moscas, num sótão, apenas com uma divisão, a um dos cantos, um pequeno divã, e em toda a volta do compartimento uma longa estante recheada de livros, onde apenas havia o vazio da clarabóia, imaginava as moscas como nós, nuas, dávamos as mãos, e eu poisava-lhe a minha mão sobre o ombro dela, ela a princípio, em pequenos movimentos de asas, como a borboleta, olhava-lhe nos olhos, como tu, olhas-me e desejas-me, e gemidos de silêncio rompiam a escuridão da pequena solidão de vidro, deitava-me de barriga para o ar, às vezes, sentia as asas dobradas como pequenas folhas de cartolina, tu, docemente, colocavas-me a mão debaixo de mim, e voltavas a fazer com que as minhas asas, fossem novamente asas, e não papel grosso amarrotado, como os dias que não saíamos, como as noites que nos amávamos sem percebermos que do outro lado do telhado, um parvalhão com um mata-moscas na mão, perseguia-nos, sem perceber
Que o amor
quando quer,
Acontece.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha