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quarta-feira, 19 de julho de 2017

O apeadeiro da solidão


Tão longe entre montanhas e socalcos,

Cravado na terra cremada da saudade,

O comboio se perde nas curvas do amanhecer,

O apeadeiro da solidão agachado junto ao rio…

Sem conseguir adormecer,

Uma voz se perde na caminhada como se fosse apenas uma gaivota amedrontada…

Tão longe entre montanhas e socalcos,

Finge acordado,

Esperando os apitos aflitos do maquinista…

Até que o pôr-do-sol regressa,

E amanhã novo dia, nova noite, e a tarde sempre igual…

Nem vivalma para entreter o estômago do desassossego.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 19 de Julho de 2017

terça-feira, 11 de junho de 2013

A dactilógrafa em lápis de cor

foto: A&M ART and Photos

“Precisa-se de menina com o curso de dactilografia, experiência em teclados HCESAR, AZERTY e QWERTY, excelente apresentação, e terá como função desenterrar manuscritos de três velhas caixas de cartão onde jazem cerca de mil (textos e poemas), horário compatível com o vencimento, entrada imediata,”
Está frio, cercam-se os animais de encontro ao curral, as ovelhas paralelamente à linha do comboio com destino a Lisboa, Santa Apolónia, parecem substâncias amorfas, empobrecidas e levianas, levava comigo uma pequena mochila, pouca roupa, um par de sapatos, alguns papeis em branco, uma caneta e um lápis e uma velha borracha, no fundo, dormitava o único livro que me acompanhava, lembro-me como se fosse hoje, e podia eu lá esquecer, “Douto Jivago” de Boris Pasternak, Russo, ex-URSS, Prémio Nobel da Literatura em 1958, que infelizmente, e por razões políticas, não lhe foi permitida a deslocação a Oslo para receber o respectivo Prémio, coisas da vida, vida enfadada de coisas, no entanto, chego a Santa Apolónia com a esperança de ressuscitar o grosso volume em pedaços de cereja, e saboreados à beira Tejo, quase que o consegui, não fosse, eu não por razões políticas, mas meramente porque me distraía com o entrar e sair da barcos que quando voltava à leitura, já as páginas do meu livro tinham zarpado, levantando âncoras e desaparecido no horizonte, apenas tinha comigo mil escudos,
Havia montes e vales que eu desconhecia, havia árvores que eu nunca tinha observado em toda a minha vida, e claro, como podia eu esquecer-me das minhas ovelhas, quem sabe, perdidas, ao Deus dará, entre chuviscos e pequenas candeias de gesso que cambaleavam-se-lhes com o silêncio dos guizos, às vezes tinha medo por mim, quando acordava, olhava-me no espelho minúsculo e perguntava-me
Sonhaste com quê, hoje?
(e eu recordo-me que durante meses não sonhei)
Encontrava-me no final do dia com homens que se vestiam com plumas castanhas e com mulheres que se encharcavam em vodka até que o Tejo desaparecia do pôr-do-sol, e elas, começavam a voar em direcção à margem Sul, o Fernando cismava que queria um par de botas da tropa, e eu cismava que brevemente estaria novamente com as minhas queridas ovelhas, nem uma coisa nem a outra, apenas me lembro de ter aberto os braços...
Velhos ciúmes que um velho televisor a preto-e-branco inventa às mãos da dona Teresa, do rádio os gemidos sons da “Simplesmente Maria”, ouvia-a. Ouvia-a... e que nunca a percebi, confesso que era ignorante, e acreditava que os sons que entravam em mim vinham de um conduta como vinha a água potável, e em criança, apenas em calções, brincava com o arrefecimento lento da torneira do quintal, ouvia o galo desesperado por volta das cinco da madrugada, e mesmo ainda não conhecendo as horas e para que serviam os relógios, todos eles e que não eram muitos, desiludi-me quando descobri que o rio que eu olhava tinha deixado de existir,
Não acredito, dizia-me ele,
E quando acordo, sinto-me no fundo de uma planície de areia, sobre mim, hélices várias em movimentos vãos, como as páginas do livro de Pasternak que ainda eu vivo, lia vagarosamente, tão vagarosamente... que me esquecia de adormecer, que me esquecia que tinha terminado o dia, começado a noite,
E
Imaginava-a sentada a uma secretária, e conforme eu ia falando, ela silenciosamente teclava os silêncios do meus lábios, e percebi que tinha morrido,
Precisa-se de menina com o curso de dactilografia, experiência em teclados HCESAR, AZERTY e QWERTY, excelente apresentação, e terá como função desenterrar manuscritos de três velhas caixas de cartão onde jazem cerca de mil (textos e poemas), horário compatível com o vencimento, entrada imediata, e por motivos de GREVE os muros em betão do recreio da escola
O Fernando cismava que queria um par de botas da tropa, e eu cismava que brevemente estaria novamente com as minhas queridas ovelhas, nem uma coisa nem a outra, apenas me lembro de ter aberto os braços..., e tombado livremente como uma andorinha depois de fazer amor como o cacimbo,
E os muros em betão, estão lá, esperam-vos, como eu espero que apareças vestida de branco em movimentos circulares sobre o teu branco também cavalo, e apenas te peço, imploro, que me deixes ficar a olhar-te, poiso os cotovelos sobre o portão de entrada e imagino-te hoje a dactilografar este texto...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 4 de maio de 2013

Quando mergulhávamos no cacimbo

foto: A&M ART and Photos

Perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar
porquê
Perdia-te, e perco, nasci perdido, nasci dentro de um mês explícito, também ele, perdido, perdido, era verão,
em Janeiro, verão
Precisamente, em Janeiro, verão, perdia-te, comei a perder-te já dentro da maternidade, depois, depois no baptismo, e parece que caíram todos os santos quando me viram, e a Igreja da Nossa Senhora da Conceição, toda ela, por mim, em lágrimas,
e por vinte escudos,
Nada,
ninguém?
A terra, o pavimento térreo, pequenas janelas, pedacinhos de luz, entre o branco e o negro, circunferências de corpos, incluindo, o teu, o dela, o dele, de lábios em triângulos, de bocas em cubos, ou... ai as saudades dos hipercubos, das lareiras em flor, da Ajuda subindo a Calçada, descendo cordas de sombra, comendo sandes rápidas depois de voar a tarde sobre a ponte com acesso ao teu púbis de mel, a outra cidade em ti, e de ti, as ruas resumidas a pequenos grupos de palavras, simples palavras, pequenas canções, melodias que eu ouvia quando te sentavas sobre o meu ventre descarnado, sem folhas, suspenso num paralelo de vidro
ninguém e nada, entre nós como Dezembro depois da madrugada,
Escrevia Janeiro e debaixo do Sol tórrido entranhavam-se-me os finos arames que seguravam o tecto das estrelas onde dormia uma tenda, um enorme oleado, por baixo, uma longa estrutura metálica
era o circo
Homens e mulheres e crianças, e palhaços, e cães amestrados, e trapezistas, malabaristas e eu como ninguém, sentado num banco, em madeira apodrecida, contava eu, cada buraco preenchido pelo bicho da madeira, quadrados, círculos de corpos, o teu, o meu, o dela e o dele, os nossos transformavam-se em madeixas coloridas, em pequenas sandálias de couro, entre calções e saias de chita, crianças que inventavam espectáculos, o público emergia, crescia, e depois
fugiam de nós,
Como hoje, ontem, e depois havia a cama de pregos onde o conceituado artista plástico, escritor e poeta, e zé ninguém, eu, ou outro igual, se deitava, adormecia, enquanto
gosto dela, assim, semi-deitada, com as pernas poisadas sobre a terra doirada, gosto dela assim, encurvada, quase nua, quase silenciosa, quase emagrecida nos poucos grãos de areia que o mar deixa nos circunflexos corpos com asas, com barbatanas, como tu, como nós,
E
(era o circo, e perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar...)
enquanto tu semi-nua, dizias-me com pequenos traços no chão agreste da terra adormecida que os meus olhos mudavam de cor, conforme os dias, as horas, as semanas, em Janeiro, em pelo verão
Verdes,
em Agosto, quando mergulhávamos no cacimbo, pareciam âncoras de cacilheiros esquecidos no Tejo, e no entanto, no meu cadastro
(Cento e setenta e cinco centímetros, branco ou caucasiano, olhos verdes – Verdes? - e foi visto pela última vez na zona do Roque Santeiro, vestia calças de ganga e t-shirt branca com pequenas formas geométricas estampadas no rosto)
verdes, verdes, verdes... como as ervas,
E ele não regressou dos olivais de Outubro, à volta de mim, pedaços de luz em decomposição, e esperava pelo comboio das dezanove horas, abria a porta, espreitava
às voltas, em círculos, como serpentes enfeitadas com veneno imaginário, como tu, imaginavas-me na aula de geometria descritiva, ou em termodinâmica... ou em mecânica dos materiais, e pelos vistos, eu, sem tu o saberes, há muito tinha desaparecido...
O comboio partia, e ninguém tinha poisado o pé sobre a plataforma em cimento sonífero como as plantas do teu Outono, ao contrário do meu, e ninguém a poisar um saco, uma simples mala, nada, e depois de três apitos fortíssimos, ela lá ia, lá ia até encontrar um poiso com olhos verdes, como os teus, como os teus, esses braços... que nunca abracei.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 30 de abril de 2013

Qual cavalo, menino?

foto: A&M ART and Photos

Não tenham pressa da minha presença, talvez um dia, talvez, regresse, talvez, um dia, decida levantar voo e andar, e andar, até encontrar o planalto das rochas encarnadas, não, pressa não, porque um dia, eu, regressarei dos finos cortinados de espuma,
uma camisa furtada do estendal da vizinha Amélia, as calças, são do cigano Mário Zé, especialista em auto-rádios e carros de pequena cilindrada, e eu, desiludida, contigo, comigo, connosco, e os velhos sapatos pertenciam ao primo Justino,
A cabeça balança entre as mãos frígidas dos lilases argumentos sem palavras de amor, palavras de dor, ou
não às palavras,
Havia dentro de nós circos, roulotes e malabaristas, o meu pai era trapezista e a minha mãe, entre os intervalos de bailarina esfomeada, tinha um pequeno número de ilusionismo, e
nunca me esqueci do sucesso número dela, quando me colocava dentro de uma caixa de cartão, batia as palmas, e eu
Desapareceste da minha vida naquela fatídica manhã de Sábado junto ao Tejo acabado de assassinar-se, os motivos, ainda hoje desconhecidos, morte incógnita, mas presente entre nós, e tu
Eu desaparecia, ela abria cuidadosamente a caixa de cartão, remexia, remexia, virava de um lado, mostrava o outro, e o rapaz
Desapareceu de casa de seus pais, digo, desapareceu da roulote onde vivia com os seus pais um rapaz do sexo masculino, cerca de seis anos de idade, cabelo castanho e olhos verdes, vestia calções e uma camisola antiquada, calçava umas velhas sandálias de couro, e levava na mão esquerda, sim, penso que sim, espere, não sei, quase que tenho a certeza, e levava não mão esquerda um cavalo
cavalo?
Perdão, um caderno de capa ondulada e escuro, sem imagens, apenas com palavras semeadas numa tarde de vento quando os bancos de jardim ainda tinham ripas de madeira, não podres, ripas de madeira a sério, e já agora pergunto-me – Onde raio fui eu buscar o cavalo? - há cada coisa, em cada hora, a cada momento, numa rua deserta da cidade, uma feira de velharias, uma boina de um soldado da EX-URSS, compro, não compro, pensei
deve ter piolhos,
Não comprei, depois, mostraram-me os cachimbos, compro, não compro, não comprei
lembrei-me da quantidade de saliva – Do tipo... um milímetro por segundo! - desisti
Pensei,
Vou comprar um livro,
que livro – Que tipo de livro deseja? - respondi, talvez de AL Berto
Ela, Como? Quem?
pensei, que raio, nem ela conhece o AL Berto...
Desisto, desisto, e desisti, hoje sou feliz, finalmente apareci dentro de uma das caixas de cartão que a minha mãe fez um dia, num lindo espectáculo, desaparecer, cresci algures, e o meu pai hoje não trapezista, reformou-se e vive desafogadamente com uma linda reforma da Caixa, não, não aquela de cartão onde a minha mãe me fez desaparecer, é a outra caixa, e a minha mãe, hoje, abre a janela da roulote e conta o número de comboios machos que passam em frente à árvore dos telhados bolorentos, porque os comboios fêmeas, ela, deixa-as seguir, sossegadamente, como se fossem o vento numa noite de cavalos...
cavalos?
Quais cavalos, menino?
Uma tarde, numa linda tarde, estava eu com uma das mãos prisioneira de uma das barras de ferro do portão de entrada, o quintal era enorme, tinha mangueiras, e ao fundo, nas traseiras da casa, havia um galinheiro, tínhamos galinhas, patos e pombas, às vezes, passeava-se por lá um velho triciclo, outras, escondia-se debaixo da sombra, e, e nessa linda tarde, repentinamente e no intervalo entre o depois do lanche e a chegada do meu avô, vi passar em frente a mim...
Como não sabe quem foi o poeta AL Berto?
Uma menina vestida de branco, montando um lindíssimo cavalo branco,
Tem ao menos alguma coisa do Pacheco?
ele, o cavalo olhou-me, e desde então, pertence-me, e anda dentro de mim até que um dia
Qual Pacheco? O Luiz, minha senhora, o Luiz,
que não, não sabe dessas coisas, ora agora..., um cavalo
Qual cavalo, menino?

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Domingo se verá se o comboio...

foto: A&M ART and Photos

Subo a calçada em direcção ao cais dos alicerces desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma porta de madeira, antiga, com um ferradura imprimida pela sombra da mão do Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, doutorado em literatura e vinho louco, quase sempre, sentado, numa tasca rasca, entra-se e ao lado direito há uma mesa velha com uma toalha de plástico, as cadeiras tremem e oscilam, parecem tartarugas sobre as areias movediças da cidade dos cães, acendiam-se as luzes que quase pareciam velas de sabão, e ele ali dormia as tardes, lia e escrevia, e bebia frases complexas e quase inacessíveis aos restantes companheiros de viagem, abria a janela, e deixava entra o ar da ruela meia escura, cinzenta, nunca mais do que dois metro de largura, e quase que se tocavam as fachadas, diria mesmo que em altas horas da madrugada. Elas abraçavam-se e faziam sexo, elas desejavam-se como se desejam os orgasmos das flores depois de colhidas pelas mãos da empregada, vestida com uma saia não mais comprida do que o joelho, e vestia uma camisola onde nem os alicerces dos seios eram visíveis a olho nu, e talvez só com uma lupa se conseguisse determinar os pontos exactos onde começavam e acabavam, e pegava-se no teodolito e ele todo inclinado, meio embriagado, dizia-nos que os seios da empregada do senhor Doutor começavam em Cais do Sodré e terminavam em Santa Apolónia, meia-noite, comboio até ao Porto, ele dormia, ressonava, fumava cigarros até que um deles ficou-se a dormir e queimou-lhe dois dos cinco dedos da mão direita, a princípio tinha o vício de segurá-los com a mão esquerda, começaram a insinuar-lhe palavras de repúdio, e ele, começou depois disso a pegar-lhes com a mão direita, apesar de ser mais firme, sempre é outro estilo
(um outro odor, belo o perfume das coxas da menina Andreia, quando, por engano o Senhor Excelentíssimo Doutro Francisco Cagarolas, e volto-o a frisar, por engano, sentou-se no colo dela, e beijou-a e quando acordou, estava no cais dos alicerces desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma porta de madeira, um janelo tão pequeno que só, e nunca mais do que dez abelhas, conseguiam atravessá-lo, e depois, sobre a mesa, em cima do plástico em toalhas de saudade, gotas de vinho misturadas com água da chuva, e escrevia, e escrevia, que sendo assim, até à próxima, não sei, quando será a próxima viagem a – Belém? - sim, Belém, Tejo adormecido, cadeiras de viagem dentro de malas de cartão, roupa vendida, trocada, roubada)
Na feira da Ladra, vestiam-se de mendigos e recolhiam moedas de escudo, hoje, nem para o “Passe” dos transportes públicos dá, não chega, quando chego eu, ele nunca está, e quando vem ele, eu não sei por onde ando, dizem que se chama Euro, mas poucos começam a colocar-lhe a vista em cima, corre-se a cidade, atravessa-se o rio, e ninguém acredita que depois de amanhã, em Alijó, um Circo famosíssimo vai apresentar o seu grandioso espectáculo, gosto
(apaixonado por Circo desde as idas em Luanda, à vinda, passávamos pelo Baleizão, sentávamos-nos na esplanada e eu saboreava gelados de gelo, porque dos outros – Não gosto desses! - e quis o destino que com quinze anos ele, o Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, apaixonado por uma trapezista, também ela, pobre, oriunda das roulotes em chapa folheada, como as barbas de milho do espigueiro de Carvalhais, não abandonasse a infância e rumasse ao desconhecido casino ambulante das cidades de vidro, a tasca quase que dorme, e das palavras, uma ténue respiração com cheiro a vinho tinto e a pataniscas de bacalhau, acabadinhas de fritar, que maravilha José, sim, sim Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, sim...)
“ o autor sabe perfeitamente que não devia escrever Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, mas sim, Excelentíssimo Senhor Doutor Francisco Cagarolas, mas quer o destino que hoje me apeteça transgredir as regras, todas, da escrita, das palavras e da boa-educação, também hoje não me apetece dormir, comer ou tomar banho”
E depois?
(sinto-me liberto, livre, com asas, e... - Vais-te embora, meu querido? - vou, decidi que vou com o Circo, sempre tem pessoas que me ouvem, compreendem, que pensam como eu, e quem sabe, talvez eu regresse ao passado e encontre a trapezista novinha, na altura, apenas com ossos e pouca ou quase nenhuma carne, abraçava-a e sentia nas minhas mãos, também elas muito frágeis, as costelas, todas, como se tivesse na mão a radiografia do tórax de uma menina que andava sobre um arame e atravessava as ruas em direcção ao pôr-do-sol...)
E depois invento qualquer coisa,
E hoje ainda só é quarta-feira,
Domingo se verá se o comboio...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Comboio Fantasma

Um pouco tarde para quem acaba de perder a casa, a vida, os olhos livres que mergulhavam nos lábios sangrentos dos telhados de vidro, um pouco ou nada, ou tudo, porquê? Muito perfeito como os diamantes das cansadas videiras sobre as mesas de xisto com vista para o rio Douro, cansei-me deste rio tristemente aprisionado numa fotografia esquecida na parede da cozinha, lá fora, há um distante silêncio que atravessa as lâmpadas incandescentes dos braços da água, aos poucos, poucos, quando chegas a casa e eu tristemente, aos poucos, lá fora, esperando o desespero de uma sandes de queijo com azeitonas e vinho, um pouco, tarde, perde-se a vida crescida nas leituras litúrgicas dos candeeiros a petróleo, gargantas ocas que flutuam no susto meteorológico das dentaduras com sílabas de prata, e quando percebíamos, ouvíamos um pigmeu cambaleando nas pedras desordenadas da calçada, um
Hoje vi a mais linda flor dos meus últimos minutos de silêncio junto a um chafariz, por sua vez, este, junto, a uma árvore, por sua vez, todos e ela inclusive, no centro de um largo com cerca de três metros e cinquenta centímetros de Raio, talvez mais, ou pouco, um
Ou dois, o chafariz e a árvore, esperavam o autocarro, a flor, provavelmente esperava pela minha passagem, todos os dias, uma vezes vou como sou, outras disfarçando-me de vento, mas vou, e passo lá, e vejo-a, com sete pedras em placas finíssimas como o fios de geada pela madrugada, o telegrama esperava-me, e ela olhou-o como se ele fosse um pedaço de aço aos tropeções pela cidade dos anjos caídos, mortos de cansaço como as pessoas de bom senso, dizem que estou mais mal educado, pudera, um
Não percebi,
Onde estão os sonhos prometidos? Não sou rapazola para fazer promessas que não posso cumprir, e as cumpridas vontades do povo encurralado nas compridas camas espalhadas pela montanha do círculos com árvores e chafarizes no centro, em redor, uma
Flor linda com pétalas de cristal, estava só e provavelmente esperava o autocarro da carreira, ou, pela passagem do machimbombo da catorze horas, um rua curva, estreita, como os seios metafóricos das tuas palavras em ressonâncias magnéticas, oiço-os quando viro levemente à direita, e sinto, sei que da esquerda, um
Comboio fantasma alerta-me que no final da linha, quando chegar ao apeadeiro em ruínas, um
Círculo, uma árvore, um chafariz e uma flor, sem que eu perceba, o que é uma flor linda com pétalas de Cristal, o que faz ali, porque está ali, de onde é e para onde vai, se se pode saber, sem o descaramento de o Cristal das pétalas estilhaçarem-se, e os braços da prata geada solidificarem-se, sós, como todos os dias quando chego ao final da linha, poiso os carris sobre a mesa, e da marmita oferecida pelo Excelentíssimo Senhor D. Joaquim Francisco de Francisco e Fernando Domingos de Solidão com Insónia, os meus pais diziam-me
Cumprimenta o Senhor,
(e eu comprimentava, e eu fingia-me de morto para não ouvir as preguiçosas mangas de camisa do dito Cabrão que todos os dias fazia questão que eu, quando estivesse no alcance do seu mais secreto círculo, me humilhasse, me
Boa tarde Excelentíssimo Senhor D. Joaquim Francisco de Francisco e Fernando Domingos de Solidão com Insónia, e ele umas vezes parecia um pedaço de rocha, outras
Vai com Deus meu rapaz, vai com Deus),
E educadamente cumprimentava o dito Cabrão com olhos de açúcar e recheados com amendoins importados das ex-colónias nunca nossas, como aprendíamos na escola, como aprendi com outro rapazola que a terra de facto é de quem a trabalha, mas o fruto, esse, pertence a quem o colhe, sempre foi assim, é assim com os pássaros negros dos finais de tarde, foi assim com os pedaços de cartolina onde eu desenhava laranjas e limões, e cidades como petroleiros flutuantes antes de regressarem os loucos ruídos das noites embebidas em pequeníssimos círculos, curtos, curtos cada vez mais, até que a árvore e o chafariz e a linda flor com pétalas de Cristal, apenas um
Ponto,
Final
Sem paragrafo.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha