Luanda/1966
(Francisco)
Conheci um navio
Que escondia na mão
O sargaço fio
Que escondia no peito a
solidão
E as lágrimas do
amanhecer.
Conheci um navio de
passear
Que me dava alegria e
saber
Enquanto eu dormia sobre
o mar.
Conheci um navio
Um navio não de brincar
Que quando o mar estava
bravio
Me abraçava na madrugada.
Era um navio de encantar
Era o Infante Dom
Henrique… hoje não é nada.
(em Setembro de 1971, fiz
a viagem Luanda – Lisboa no Infante Dom Henrique)
08/01/2024
Podia ter vinte Oceanos
que nunca conseguiria abraçar o mar e, no entanto…, e, no entanto, amo o mar, e,
no entanto, às vezes odeio o mar; e o meu pai, pegava na minha mão minúscula,
mão de poeta, frágil, e leva-me a ver o mar e a olhar os barcos.
Apaixonei-me pelo mar e
por barcos.
Hoje, hoje percebo que
nunca conseguirei voar como voavam os papagaios em papel colorido que a minha
mãe construía ao final de tarde, debaixo das mangueiras…
Hoje, hoje percebo que
foi tudo uma mentira.
(feliz dia de África)
Não sei,
Não sei como será o
Inverno
No Inferno,
Não o sei…
Mas… quem o saberá?
Farto-me de escrever
poemas a Deus…
E Deus está literalmente
a cagar-se para mim,
Não me importo,
Quero lá eu saber de
Deus,
Tal como ele,
Quer lá Deus saber de um tal
de Fontinha…
Não o sei,
Quem o saberá…
Vocês sabem como será o
Inverno no Inferno?
E de um tal de Inferno
disfarçado de Inverno?
Não, não me interessa…
Em criança, até um determinado
período da minha vida…
E que vida,
Meu Deus,
Que rica vida eu tive…
Não sabia o significado
de Inverno.
E era muito feliz!
Muito mesmo…
Tão feliz que…
No meu Inverno,
Trazia os meus calções e
as minhas sandálias de couro…
Que couro, meu Deus,
Que calções…
E quer lá saber Deus dos
calções e das sandálias…
Deus,
Deus passa todo o seu
tempo a escrever poesia…
Entre calções,
Tão feliz que fui…
Muito feliz,
E do meu Inverno,
Que Inverno,
Aquele meu Inferno,
De aprender o significado
de Inverno…
Quando eu…
Tudo esqueci,
As sandálias, os malditos
dos calções, o Mussulo, tudo,
Tudo mesmo.
Durante muitos anos,
Muitos mesmos,
Queria perguntar ao meu
pai porque choravam as acácias da minha infância…
E tudo,
Já não me lembrava de
nada…
Apenas…
Machimbombo…
Que coisa, esta, do
Inverno ser Inferno…
E Deus, o poeta, ser tudo…
Tudo o que não fui,
Tudo o que não quero ser,
Ser o quê…
Mais um, por aí…?
E chorei.
E chorei sem perceber que
chorava…
Que apenas me recordava,
De ter chorado,
Não porque me apetecesse
chorar…
Mas chorava,
Tinha medo de me perder,
E um dia, perdi-me, por
aí…
Um dia, meu Deus…
Um dia…
Chorava porque tinha
frio,
Chorava porque tinha
medo,
Chorava porque me sentia
só…
Qualquer coisa que nasceu
comigo, não me pertencia…
Tinha morrido,
E até hoje,
Hoje… nada,
Até hoje não sei a coisa
que morreu,
E que até hoje,
Não consigo dizer que
coisa é essa…
E se não há coisa,
Não haverá cadáver,
Nem haverá crime…
(peço desculpa pela ausência,
mas assuntos do foro privado chamavam-me)
A minha mãe,
Coitada da minha mãe…
Tal como eu,
Também ela chorou muito…
Muito…
Éramos assim…
Como deslocados,
Ausentes de corpo e alma,
Não,
Nunca acreditei na
existência da alma…
Nunca.
A minha mãe,
Coitada da minha mãe…
Eu chorava,
E eu sabia que a minha
mãe chorava porque eu chorava…
Éramos ausentados,
Deslocados da terra e do
primeiro pigmento de cor…
Abraçava-me a ela,
E ela mentindo-me,
dizia-me… um dia, um dia meu filho…
Um dia tudo vai melhorar…
Um dia,
Um dia cairá chuva na
minha mão,
Um dia,
Um dia…
Não sei,
Não sei como será o
Inverno
No Inferno,
Não o sei…
Mas… quem o saberá?
Farto-me de escrever
poemas a Deus…
E Deus está literalmente
a cagar-se para mim,
Não me importo,
Quero lá eu saber de
Deus,
Tal como ele,
Quer lá Deus saber de um tal
de Fontinha…
Ou do Inverno no Inferno,
Do Inferno a infernar o
Inverno…
Quer lá ele saber…
A não ser…
Que Deus seja accionista
do Inverno e credor do Inferno…
Ó pá,
Deus é comunista…!
Deus não é nem nunca será
capitalista…
Veremos, um dia…
Um dia, um dia veremos.
Francisco
25/05/2023
O meu retracto,
Por Francisco Luís
Fontinha.
Quem sou, pergunto-me
enquanto recordo o som das acácias da minha infância. Quem sou eu, depois de
ter deixado a minha cidade nas sombras da saudade. Quem serei eu, quando as
minhas cinzas povoarem as alegrias da minha cidade.
Acordei. Acordei acreditando
que voava sobre as mangueiras do meu quintal; e claro, a minha mãe a construir
papagaios em papel, depois, corríamos pela rua com a ponta do cordel na ponta
dos dedos…
E eu delirava com todas
aquelas cores em direcção ao infinito. Depois de todo o cordel estar esticado,
ele ficava ali, quietinho, dizendo-me adeus…
E eu, eu filmava todos
aqueles momentos.
Mas enquanto me olhava no
espelho, olhei os meus olhos; e se me perguntassem o que dizem os meus olhos…
Puxo de um cigarro,
penso. Talvez não deva pensar mais.
Penso.
E os meus olhos dizem que
esta viga de seis metros, alveolar, um IPE360…, ao fim de dois segundos, morre.
Colapsa.
Nós, nós demoramos muito
mais a colapsar.
E os meus olhos dizem-me
que são um livro de poesia, um livro que se extingue a cada dois segundos,
Colapsa.
Morre.
E os meus olhos dizem que
todas as cores estão loucamente apaixonadas por todas as minhas telas,
Depois,
Colapsou.
Mas o meu retracto ainda
não está completo.
Olho-me,
Penso,
E grito.
Acordei acreditando que o
retracto que via no espelho, não era o meu. Acordei acreditando que a cada
equação de silêncio, há um beijo desejado e uma lâmina de paixão concluída.
E a minha cidade lá está.
Como todos eles lá estão.
Depois, pego no meu
retracto, coloco-o no cavalete, afasto-me um pouco de ambos, e…,
Nada.
Olhava-os. Eles também me
olhavam.
Sorria-lhes. Eles também
me sorriram.
Somos assim.
Sorrimos uns para os
outros.
Vês?
São tão lindas, mãe, são
tão lindas todas estas cores…
Alijó, 20/05/2023
Um anónimo
Conversamos então,
Meu amigo,
Conversamos sobre esta
vida,
Desta vida,
Meu amigo,
Conversamos sobre os
pássaros da minha infância,
Dos barcos da minha
infância,
Conversamos então,
Meu amigo,
Conservamos sobre o mar,
O mar da minha infância…
Ai meu amigo…
Conservamos então,
Conservamos sobre as
flores que se apaixonam por poetas,
Conservamos então,
Meu amigo,
Conversamos sobre os
poetas que se apaixonam pelas palavras…
E as palavras que se
apaixonam pela amante do poeta,
Mas sabes, meu amigo…
Conversamos então,
Conservamos sobre a
amante do poeta que está apaixonada…
Apaixonada pela mão do poeta,
Da mão de onde nascem as palavras,
Do poeta, meu amigo,
Do poeta.
Deste teu poeta, meu
amigo…
Conversamos então, meu
amigo,
Conversamos sobre o meu
pai,
Meu amigo,
Conversamos então…
Conversamos sobre o meu
pai,
E não há muito a conversar…
Mudou de residência…
Conversamos então, meu
amigo,
Conversamos então sobre a
tua mãe…
Conversamos então,
E quanto a ela,
Também mudou de
residência,
E sabes, meu amigo,
Concluo que ambos mudaram
de residência,
E devem estar muito
felizes…
Eu, meu amigo,
Já quase não vou ao
cemitério…
Cansei-me,
E sabes, meu amigo,
Comecei a vender umas
merdas que pinto…
Qualquer dia vendo poemas,
Sim, pá,
Poemas,
Não sabes o que são
poemas?
Vendo-os a retalho e a
cinco suaves prestações,
Fixas,
Sem juros…
Porque meu amigo,
Tu conheces-me…
Não sou desses,
Depois,
Depois das poucas vezes
que passo por ti…
Dou-te as boas-horas…
E um dia vamos inventar
uma máquina de escrever poemas…
Percebes?
Uma pequena caixinha,
A menina apaixonada
insere a moeda na ranhura…
Dá à manivela…
E poemas, muitos poemas…
E os poemas, meu amigo,
Os poemas às vezes
atiram-nos (aos poetas) para a fogueira…
Sabes, meu amigo,
Em puto, era o gajo mais
ranhoso de Luanda,
Mais chato,
Mais…
Mimado?
(Eu sei te lá)
Não o sei…
Mas era amado,
Quando era puto,
Obrigava o meu pai… a ir
comigo olhar os barcos…
Entrava no cacilheiro em
Cais do Sodré,
Despedia-se a tarde de
mim…
E acordava em Cacilhas no
Quartel errado,
O que se há-de fazer, meu
amigo…
Eu e o meu pai sentávamo-nos
no chão,
E eu,
Que alegria, meu amigo,
Que alegria estar duas ou
três horas a olhar para os barcos…
Tão grandes e tão altos,
pai…
E sabes, meu amigo,
Quando me trouxeram…
Tive medo,
Chorei muito…
Quando a cidade
desparecia de mim…
E tudo se transformou
numa só imagem; uma sombra e um punhado de lágrimas…
Mas… não sei, meu amigo,
Não o sei,
Mas tenho saudades das
nossas conversas…
E dos desenhos
tridimensionais que descrevias no silêncio.
Alijó, 16/05/2023
Francisco Luís Fontinha
Uma gaivota de sono
Poisa nos teus lábios,
E fico tão triste,
Tão triste… meu amor…
Porque não sei como afoguentá-la
dos teus lábios
E tenho medo de que ela me
roube o teu olhar,
Ai meu amor…
Como são tristes as
janelas do teu silêncio,
Como são tristes,
Meu amor,
As palavras das minhas
madrugadas,
Enquanto penso se essa
maldita gaivota…
Te vai roubar esse lindo
olhar,
Cartas que te escrevo
Nas suspensas manhãs de
enxofre,
Enquanto nas tuas mãos ardem
as flores do teu luar…
E essa maldita gaivota
com asas de veludo
Que não se cansa de te rondar,
Qualquer dia,
Regressarão as tristes
Primaveras,
De que nunca tive medo,
Medo não tenho,
Medo nunca o terei…
Mas preocupa-me essa
gaivota de sono
Sem nacionalidade…
E filha da lua,
E dizem que o pai é a
saudade.
Qualquer dia,
Um outro dia do meu dia,
Teremos dentro de nós as derramadas
lágrimas da manhã…
Sem que regressem as rimas
nocturnas do teu púbis,
E sendo assim,
Que faz essa gaivota,
Meu amor…
No silêncio dos teus
lábios?
Uma gaivota de sono
Poisa nos teus lábios,
E fico tão triste,
Tão triste… meu amor…
É que nunca sei…
Se essa maldita gaivota
te vai roubar o olhar,
Ou se essa maldita
gaivota…
Apenas me quer chatear,
Olha, meu amor…
Tal como a madrugada,
Quando acorda,
Me lança ao cardume do
silêncio,
E apressadamente,
Tenho de correr para o
próximo apeadeiro do desejo,
E de comboios nada
percebo,
Mas parece que não
interessa nada perceber de comboios,
Não interessa nada
perceber de aviões ou de barcos…
Tive muitos barcos, meu
amor,
Muitos barcos em toda a
minha vida…
E quase que sou capitão da
marinha mercante e afins…
Estacionava-me nos teus
braços…
E zás,
Lábios com lábios,
Boca com boca,
Cabelo com cabelo…
E quando lhe perguntaram qual
é era a raiz quadrada de seiscentos e vinte e cinco…
Não sei, professor…
Nunca o soube,
Que tens uma gaivota de
sono nos teus lábios…
E da rua da masturbação
número vinte e cinco,
As flores da tia Joana em
decomposição,
Todas elas mortas,
Todas,
Todas elas em profundo
silêncio…
Enquanto rezávamos que a
tarde nunca terminasse,
E como é triste, meu amor…
Como é triste a partida
daqueles que amamos…
Um filho perde o pai,
Perde a mãe,
Perde o seu melhor amigo,
O amigo já tinha perdido
o melhor amigo…
Um pai e uma mãe…
Perdem tudo, quando
perdem um filho…
E eu,
Nada,
Aqui sentado sobre uma
pedra de sono,
Cinzenta,
Rabugenta,
E tenho medo, meu amor,
Tenho medo dessa gaivota
de sono…
Tenho medo do sono que
pertence a essa gaivota,
Tenho medo do feitiço da
lua
E das garras da alvorada,
Cansaço do corpo que
protege o silêncio,
E depois,
Bom…
Depois vinham a nós as
primeiras palavras da noite,
E a noite traz-nos de
tudo,
Traz-nos as sementeiras
da noite anterior,
Traz-nos o desejo do próximo
dia…
E sempre que posso,
Rezo à minha mãe…
Que me proteja,
E que nunca me falte a paciência
para um novo dia,
Abraço-me à imensidão deste
mar selvagem,
Onde os cardumes da
paixão sobrevivem apenas com duas gotas de água…
E um pequenino silêncio
de sono,
O teu sono,
Esconde-se na minha mão,
Remexo os papeis,
Todos,
Encontro tudo,
Tudo,
Menos aquilo que procuro,
Apenas, meu amor,
Apenas preciso de um
pedacinho do teu corpo…
Onde desabafar as
alvoradas que perdi em Luanda,
Os vidros sem janelas,
O vento aprisionado na
tua boca…
E se me perguntassem qual
era a cor do silêncio…
Certamente,
Com toda a certeza,
Responderia…
Não o si,
Nunca o soube,
As cartas voam…
E só a maldita dessa gaivota
é que não levanta voo,
Essa gaivota de sono,
Sem dó nem piedade…
Que se alapou nos teus
lábios…
E que não me deixa
aproximar…
E tão pouco escrever o
que penso sobre a equação de Deus,
Não sei, meu amor,
Não sei se a resolva…
Ou simplesmente a deixe
ficar, tal como está, em cima do guarda-vestidos…
O professor Carlos
Andrade, põe-te fino Francisco…
O professor Luís Mesquita,
põe-te fino Francisco…
E o Francisco que também
é Luís,
Nunca sabe se quando está
a falar com os professores…
É o Luís poeta,
Se é o Luís escritor de
estória sem fundo…
Se se é o pintor…
Que mal acordou, após
nascer…
Escreveu nos olhos da
doce mãe…
Amo-te,
As madrugadas são como os
vidros,
Sem janelas,
Sem barcos de engate,
(e se eu pudesse
afugentar essa maldita gaivota de sono.)
Mas não o posso fazer,
Não,
Quando do silêncio,
Uma pequena árvore se
ergue no teu cabelo…
Um pequeno sorriso se
desenha nos teus seios de esmeralda…
E depois,
Nada,
Como sempre,
Sento-me sobre esta pedra
cinzenta…
E rezo,
E rezo muito…
Que nunca tenha asas de
verdade.
Alijó, 04/05/2023
Francisco Luís Fontinha