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sábado, 9 de março de 2013

Os ouros em fumo de cigarros

Poucas coisas tínhamos para dizer,
(há dias assim, esquisitos, doentes, dias de “merda” que eu vejo a aproximação de uma noite, também ela, esquisita, doente, e de “merda”),
deixou de ter paz e sossego, depois de clarear a manhã e de muitos milímetros quadrados de gotinhas de água, lembrou-se que hoje era Sábado, e que hoje não necessitava de levantar-se cedo, tomar banho apressadamente, o pequeno almoço em soluços e o primeiro café ainda as moedas jazem na algibeira, hoje Sábado não puxou pelo primeiro cigarro, pois precisamente hoje, Sábado passaram dez meses que fumou o último cigarro, e
dizia ele,
é como o amor e a paixão, aos poucos vamos esquecendo, tudo na vida podemos esquecer, não apagar como se existisse um apagador que absorvesse o giz das coisas boas e das coisas más que a vida constrói sobre a ponte metálica que atravessa o rio da saudade, mas, depois, depois passados os enormes segundos multiplicados pelos duodécimos do prazer, e
dizia ele que ainda ontem tinha tudo, e hoje, nada lhe resta,
(eu sinceramente não acredito nas suas palavras, porque nunca se tem tudo, e quando pensamos que temos, falta sempre algo), mas isso é lá com ele e de aldrabão tem um pouco, como todas as flores que vi e ouvi no jardim da casa dele,
poucas coisas existem concretamente para dizer,
que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros,
é a vida amigo Gonçalves digo-lho eu, confesso que fica mais calmo, do tipo, deixa lá amigo, a minha casa também ardeu toda, ou então?
também tal como tu estou encornado e não é isso que me vai matar ou por isso vou deixar de viver, vamos mas é ao tasco beber umas minis, uns vinhos tintos, e quem sabe, na volta do correio, um novo amor apareça, como apareceram aquelas palavras que descobriste na parede do sótão, ou
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
ou, poucas coisas tínhamos para dizer, e como sempre haviam silêncios disfarçados de melódicos sons embrulhados num fino pano de linho, ou
não quero,
eu respondia-lhe,
eu também deixei de querer,
e comecei a acreditar nas nuvens com braços e pernas e corpos de mulher, e comecei a acreditar no vento que empurram as nuvens com corpo de mulher para o cimo da montanha, onde solitariamente, vive uma pedra com braços e pernas e também com corpo de mulher, e comecei a acreditar nas palavras que começaram a cair do céu, e comecei a acreditar que o mar
não tinha nada para me dizer,
e comecei a creditar que um vez por semana o mar subia a montanha e com a sua salgada água ensanguentava as nuvens e a pedra, com pernas e braços e corpos de mulher, e comecei a ver os dias a entrarem dentro de um tubo de vácuo, e rodopiavam e rodopiavam e rodopiavam
(que está a chover, mas isso não me é novidade, cheguei do café à pouco e acreditem que tinha mais água em mim do que moedas de ouro, e como diz ele
os ouros desaparecem como o fumo dos cigarros),
e rodopiavam até tropeçarem nas mentiras inventadas pelos livros que só o Inverno consegue transformar em lareira, estava frio, a nuvem e a pedra, com braços e pernas e corpos de mulher começaram, também elas, a acreditar
(e quando muita gente começa a acreditar numa mentira, quando chega o Sábado, já é uma verdade anunciada, proclamada e publicada em livro branco que em todos as lápides existe),
é assim a vida, amigo Gonçalves,
sabes?
não, diz,
vou ouvir um pouco de Fingertips e ler o livro de Colette “Gigi” ou Bernardo Soares “Livro do Desassossego”, ou em vez de ler, oiço apenas, ou aproveito e enquanto oiço, penso, que
poucas coisas tínhamos para dizer, e no entanto, chove torrencialmente na minha vida.

Francisco Luís Fontinha