sábado, 23 de julho de 2022

Os pássaros da madrugada

 Desciam as escadas enquanto mergulhávamos nas palavras escritas que só o velho mendigo conhecia e depois acordávamos entre os pássaros da madrugada e depois olhávamos a maré em tons de cinzento sem percebermos que a noite é a morte vestida de estrelas abraçada à dor que apenas o corpo consegue desenhar na madrugada porque de luas e percebes estávamos fartos de desenhar na alvorada ora porque diziam que estávamos mortos se ainda conseguíamos escrever na areia molhada dos teus seios suspensos as canções de revolta enquanto uma enxada brincava no silêncio do deserto antes de acordarem os pássaros da madrugada?

 

És flor deste jardim construído nos socalcos do desejo. Abro a janela do medo enquanto oiço as acácias que brincam no teu corpo, depois, percebo que ninguém habita a tua mão onde deixo ficar as minhas palavras como se estas fossem a despedida; o poeta vai partir em direcção ao mar, porque neste porto apenas vagueiam barcos em papel e fotografias da tua dor.

Desciam as escadas enquanto mergulhávamos nas palavras escritas que só o velho mendigo conhecia e depois acordávamos entre os pássaros da madrugada, sem percebermos que dentro do círculo com olhos verdes, as palavras semeiam-se como se semeia o medo de acordar junto ao velho plátano de uma infinita infância entre montanhas e socalcos e seios de luz e lágrimas de luar; e aos poucos percebia da tua respiração que em breve voarias como voam os pássaros quando percebem que o silêncio é uma equação sem resolução. E que ainda hoje voas.

Diziam que estávamos mortos se ainda conseguíamos escrever na areia molhada dos teus seios suspensos as canções de revolta enquanto uma enxada brincava no silêncio do deserto antes de acordarem os pássaros da madrugada, depois, ouviam-se as canções de despedida embrulhada nas lágrimas que apenas o poema consegue descrever, quando sentado num qualquer banco de jardim…

À dor que apenas o corpo consegue desenhar na madrugada.

Nada mais.

E que ainda hoje voas.

 

 

 

Alijó, 23/07/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 19 de julho de 2022

As gaivotas da minha infância

 

Um dia saberei onde habitam as gaivotas da minha infância. Um dia vou desenhar os cheiros e sombras da minha infância, depois, olharei o mar e lanço-me às marés da minha infância.

Um dia vou perceber porque voava a mulher vestida de negro e que de nuvem em nuvem, em danças vertiginosas, descia ao mar da minha infância, tal como eram as palavras da minha infância. Diziam-me que o silêncio, quando acordava, era mau presságio, e do outro lado do rio, ouviam-se as balas tristes que afoguentavam os homens da minha infância; então um laminado sonoro de batuques mergulhava no capim húmido da minha infância. Um alegre menino da minha infância chorava, o poema que habitava do outro lado da rua, esse, nem chorava nem ria nem brincava nem dizia nada. Porque quando nos silenciamos, aprendi hoje, os outros dizem tudo.

Um dia saberei porque escreviam as gaivotas da minha infância na húmida terra mergulhada nos cheiros da minha infância, porque hoje, o menino dos calções da minha infância é apenas um esqueleto que de triciclo na mão, escrevia círculos lunares na esplanada da minha infância. Vi o mar quando ainda dormia na barriga da minha infância e quando ouvia as gaivotas da minha infância, corria para os braços da minha infância.

Todos, incluindo o chapelhudo, ouvíamos o silêncio da minha infância, porque da baía avistávamos os barcos envenenados que o velho marinheiro, depois do almoço, levava a passear pelo Mussulo; não sabíamos que do mar, às vezes, vinham as crianças da minha infância de mão dada com as bonecas em trapos e em pedacinhos de riso, às vezes, muitas vezes, queriam fazer-nos querer que rir era proibido.

E ouvíamos uma voz que gritava; atira-lhes com poesia, porque os canalhas detestam poesia. Pudera.

Rir era proibido. E hoje procuro as gaivotas da minha infância, enquanto as sombras da minha infância, são equações complexas que na minha infância, em nada me serviam para fugir das gaivotas da minha infância.

O grito.

Porra.

Porra e Deus queira que amanhã chova como chovia na minha infância como gritavam na minha infância os tristes mabecos como dormiam os embondeiros da minha infância como o chapelhudo se erguia e transformava a minha infância em mar…

O mar que ficou lá.

E por cá, não gaivotas da minha infância. E por cá não espingardas da minha infância.

Um dia saberei onde habitam as gaivotas da minha infância onde jazem os ossos da minha infância como os barcos da minha infância no musseque da minha infância onde o zinco dormia depois das gaivotas da minha infância chorarem porque o mar da minha infância desertou como desertaram os corajosos da minha infância.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 19/07/2022