quinta-feira, 16 de junho de 2022

Árvores sonâmbulas

 

Sabíamos que das árvores sonâmbulas

Acordavam os gritos faminto da fome,

Empenhando a bandeira sem nome

Que todas as tardes, dormia junto ao rio.

 

Sabíamos que das tuas palavras

Se erguiam os corações de prata,

Pedaços de lata

E pequenas andorinhas da madrugada,

 

Enquanto lá fora, sem percebermos

Porque morriam os poemas amanhecer,

Havia sobre a mesa uma pequeníssima folha onde escrever,

Havia o grito da noite,

 

Sabíamos que das árvores sonâmbulas,

Algumas delas, envenenadas pelo silêncio da alvorada,

Descia das mangueiras uma manga cansada,

Uma manga enraivecida,

 

Porque dentro de nós,

Adivinhava-se a tempestade do feitiço, primitiva

Equação em desejo. Porque dentro de nós existia o sono

Travestido de tédio.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 16/06/2022

Uma Bedford amarela, um machimbombo e roupas que apenas o “chapelhudo” vestia em noites de poesia nas noites de luar,

 

Tínhamos na algibeira a silenciada espada do silêncio; porque morrem os pássaros, mãe?

Não sabíamos que dentro dos corações de veludo, alguns deles, tristes e sós, habitavam nuvens de prata e palavras camufladas pela solidão das manhãs em que eu, menino de colo, brincava na areia branca do Mussulo.

Que saudades, mãe!

Do Mussulo?

Não, pai, não…

Dos papagaios em papel invisível que a mãe construía sem conhecimentos de física, matemática ou aerodinâmica,

E a Bedford, pai?

Que tem, filho?

Morreu num dia de chuva, como hoje.

Voava em direcção ao sol, depois, num ápice, escondia-se sob a inflamada escuridão das manhãs sem sono. Até as mangueiras tombaram no chão lamacento, depois das trovoadas que quase sempre traziam pedacinhos de tristeza, que quase sempre traziam envenenadas palavras, que hoje escrevo na tua mão.

E o menino do triciclo e dos calções?

Não sei, mãe, não sei porque brincavas comigo e juntos contruíamos vestidos para o “chapelhudo”, mas depois do sono, quase sempre, vinha até nós a madrugada travestida de socalcos que só o nosso Douro lança sobre as tempestades de saudade que de vez em quando caem sobre os meus ombros, frágeis, muito frágeis.

Depois, aparecia o avô Domingos com um cordel na mão que servia para puxar o machimbombo que todos os dias passeava nas ruas de Luanda. Depois, vinha o meu pai com a Bedford amarela, tão cansada ela, tão cansada,

Que o menino do triciclo e dos calções abraçava sem perceber que hoje, que hoje não Bedford amarela.

Tínhamos na algibeira a silenciada espada do silêncio; porque morrem os pássaros, mãe,

Porque voam os pássaros, mãe?

E sabíamos que um dia, hoje, as palavras são flores que habitam o meu jardim em papel e, talvez, quem sabe, na tua lápide, deixe um poema, um beijo numa acrílica tela ou

Porquê, mãe?

Ou sejam os sábados prisões de almas, sombras, ou sejam apenas pequenos nadas das palavras, tuas, quando embarcaste nessa viagem sem que o mar recordasse o Mussulo encaixilhado numa janela com fotografia para o rio.

Uma Bedford amarela, um machimbombo e roupas que apenas o “chapelhudo” vestia em noites de poesia nas noites de luar.

E a Bedford, pai?

Que tem, filho?

Morreu num dia de chuva, como hoje.

 

 

Alijó, 16/06/2022

Francisco Luís Fontinha