sábado, 7 de maio de 2016

Ausento-me de ti na noite


Era forçado pela pressa das coisas. O silêncio imaginário da manhã quando pegavas na minha mão ao desaparecer no meio dos transeuntes da cidade perdida,

Escondia-me das sombras dos aciprestes,

Porque assim, pensava eu, estaria mais protegido das estrelas, mas não estava.

A noite era uma aventura,

Eu preferia ler, e tu, e tu preferias passear, que confesso, que confesso não me apetece nada caminhar apenas por caminhar,

Se ao menos caminhasse em direcção ao Luar… era forçado pela pressa das coisas,

Tens de fazer isto, amanhã tens de fazer aquilo…

Chega. Detesto receber ordens de arbustos e munto menos de ti.

Sou feliz assim, confesso.

Não dou nem recebo ordens,

Sou livre, voo na companhia das gaivotas ao final da tarde junto ao Tejo,

Depois poiso em Belém,

Acorrento-me às amarras invisíveis da maré,

Olho os veleiros em atropelos sem que ninguém lhes valha…

Como a mim,

Nem palavras nem poesia,

Nem os livros me deixam adormecer quando tu, depois de caminhares em círculos, cansada, dormes, eu olho-te e finjo não te ouvir, prefiro ausentar-me na noite, e regressar quando já o dia bate na janela do nosso quarto,

Descerro a lápide do desassossego, não encontro nela o meu nome…

Deixei de pertencer aos humanos visíveis das avenidas laminadas pela escuridão,

Tenho no peito um fantasma, um falso coração que em vez de amar…

Bate, bate sem parar…

E um dia vai parar,

E nesse instante serei o homem mais feliz do Universo,

A minha morte; as coisas cessam, e deixam de ter pressa,

E deixam de ter graça.

E eu, e eu serei apenas eu…

Uma carcaça.

 

Francisco Luís Fontinha

sábado, 7 de Maio de 2016

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Transatlântica manhã de Inverno


Os cigarros no atropelo da noite

Sem ninguém junto ao luar,

Os viciados poemas cansados de lutar

Na ânsia da alvorada,

O preguiçoso mosquito… sobre a mesa-de-cabeceira,

Entre círculos e quadrados,

Entre geringonças e roldanas falsas,

E de cabeça lapidada…

Vou-me a eles,

Aos cigarros,

Fumo-os e escrevo no teu ventre a poesia anónima do destino,

Corro sobre o arvoredo,

Salto a montanha,

E sento-me nos rochedos da miséria,

Vagabundo vegetariano do mundo indefeso,

Sinfonia dos morcegos

Nas tardes junto ao rio,

Ao longe o teu olhar cor de pérola amargurada

Difuso,

Distante dos meus olhos vidrados pela geada,

Os cigarros em transe,

A madrugada sitiada

No meu coração…

E sinto-me um prisioneiro do amanhecer,

E sinto-me um cardume indefinido pelo sexo, idade ou religião…

Perco-me em ti,

Como se fosses uma transatlântica manhã de Inverno

Sobre os carris da insónia,

Grito,

Grito enquanto dormes sobre o meu peito,

E se me ouves…

Diz-me…

Como se chamam as pedras do teu sorrir

Que me acordam ao entardecer.

 

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 6 de Maio de 2016

quarta-feira, 4 de maio de 2016

A flor desenhada no chão


Finalmente o sossego chegou.

Liberta-se a tarde dos braços do dia,

Quase noite, oiço no interior do meu corpo o outro eu,

Cansado com a vida,

Não vê TV…

E só ouve poesia.

Debruça-se no parapeito da janela sem vista para o mar,

Fuma uns quantos cigarros de enrolar, e saboreia a Lua que se avizinha,

Não tem medo do escuro, não tem medo da chuva,

Mas tem medo da vizinha.

Algures do outro lado da rua

Uma flor desenhada no chão lê “LE CLÉZIO” … “A febre”,

E eu, sem razão aparente, sinto o calor no meu corpo,

Talvez contaminado pela “febre”, talvez porque a flor desenhada no chão

É a flor mais bela que nos últimos anos vi no meu jardim,

O outro eu, entretido com os cigarros de enrolar…

É doido,

Ouve poesia,

Despensa a TV…

E nem se apercebe que terminara o dia,

Levanto-me, estonteante, sinto um círculo de mobiliário do Século passado,

E livros,

Tento abraçá-lo, ele foge de mim como se eu fosse uma nuvem poeirenta,

Com fome,

E com a tempestade no ventre,

Fervilho, a flor desenhada no chão fecha o livro, sorri e desaparece como desaparecem as andorinhas depois da Primavera,

Finalmente está a chover,

E a “febre” começa a baixar,

Já consigo andar,

E sorrir

Para a flor desenhada no chão.

Gosto de Jazz, também gosto de poesia, se possível lida pela voz melódica da paixão,

E sentir na pele o salgado mar

Das cidades portuárias,

Embriagados versos

Ou marinheiros sem Pátria,

Tanto faz,

Quer ele queira quer não… vou abraçar o outro eu,

E seja o que Deus quiser,

Abraço-o,

Beijo-o,

E percebo que somos dois palhaços envidraçados,

Um fuma cigarros à janela,

E eu, o outro eu, encantado com a flor desenhada no chão.

Somos uns coitados,

Um esqueleto com duas faixas de rodagem,

Dois parvos,

Dois parvos.

 

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 4 de Maio de 2016

terça-feira, 3 de maio de 2016

A morte do dia


O dia desaparece nos alicerces da solidão,

O meu corpo finge não pertencer a este objecto inanimado

Que habita esta casa, ouvem-se os pequenos resíduos do cansaço,

E antes de regressar a chuva, termino o meu desejo.

A paixão quando os olhos navegam sobre as searas conduzidas pelo vento,

E que mais tarde morre junto ao cais do sofrimento,

A dor entranha-se nos ossos da tristeza,

O silêncio alimenta o desassossego da alma…

Que permanece impávido quando lhe toco com a minha mão,

Não importa se a noite traz o prazer do sono,

E se os sonhos são desenhados nos corredores inabitados deste rio sem nome…

Morre o dia.

Libertam-se de mim todos os círculos da geometria

E todas as palavras do alfabeto,

O dia já foi, e não voltará mais ao meu corpo,

Abro a janela, sinto o odor do teu olhar

No sexo da melancolia,

Entre azedumes e poemas…

Camuflados pelo incenso da madrugada,

Odeio o teu corpo como sempre odiei o meu,

Pedaços de farrapos suspensos no estendal embrulhados em cordas de nylon,

Descendo a montanha,

Desço-a enquanto o dia é levado para outros longínquos lugares,

Triângulos de papel que ardem à minha passagem,

E tudo em que toco… arde, ou morre…

Morre o dia. Ergue-se a noite no esplendor do esquecimento, e este circo não cessa de dançar sobre os rochedos do medo,

A doença toma conta de mim,

Fico ausente perante os teus olhos,

Fico ausente quando acorda a noite e se libertam de mim as frágeis tempestades de areia,

O mar imagina-me brincando junto aos barcos de esferovite,

Sem motor,

Espero o vento das aldeias em flor,

E quando me apercebo… estou em pleno Oceano,

Liberto de ti

E das garras do teu corpo,

Morre o dia.

Morre o meu corpo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 3 de Maio de 2016

domingo, 1 de maio de 2016

Caixotes de recordações


(à minha mãe)

 

Sou um marinheiro sem barco nem porto onde aportar.

Trago comigo a âncora da solidão cravada no coração,

Trago comigo a ausência do destino abandonado,

Sinto-me um velho encravado nas estrelas,

Pegando num livro de um poeta morto; todos os meus poetas morreram…

E pertencem agora aos meus sonhos.

Sou um verdadeiro falso,

Um falso feliz caminhando junto ao Douro,

Descendo os socalcos do teu corpo,

Encurvados na paisagem abstracta do silêncio,

Sou um privilegiado,

Tenho o dia e a noite,

Doce paixão dos mares amargurados,

Dos barcos apaixonados,

Como eu,

Apaixonado pelas tuas palavras,

Não vás.

Tenho nas veias o rio da morte,

A insónia saboreando o suspiro da noite,

Sofro tanto… meu querido,

Os apitos junto ao mar,

Eu menino agachado nas saias da minha mãe,

Via a cidade escurecer,

Desaparecer,

E morrer,

Apenas caixotes de recordações,

E o beijo da minha mãe,

Sou um marinheiro da madrugada,

Um sifilítico cadáver do desejo,

Nos teus braços,

Mãe,

As fotografias dos negros rostos da nossa infância,

As palmeiras que incendiavam o teu amor,

Junto à baía,

Os gritos das serpentes que deixamos nos quintais das outras brincadeiras,

Os pássaros, mãe, os pássaros,

Junto à janela!

 

 

Francisco Luís Fontinha

1 de Maio de 2016