sábado, 28 de abril de 2012

Sem nada

Nas paredes curvilíneas da memória
poiso os meus braços de prata
acaricio pacificamente
os meus lábios de incenso
e as pinceladas do meu rosto
vagueiam livremente no vidro transparente
de linho amanhecer
antes do pequeno-almoço

oiço a tua voz misturada
nas acácias do fim de tarde
oiço-te enquanto me olho nas paredes curvilíneas da memória
sem palavras sem estória

sem nada

poiso os meus braços de prata
acaricio pacificamente
os meus lábios de incenso
e nas pinceladas do meu rosto
acorda a madrugada
cresce uma rua sem saída
suspensa numa cidade imaginária
com muitas portas e janelas
e calçadas
e velhos que se esqueceram de acordar
e fingem orgasmos pulmonares
e constroem a felicidade
num vão de escada
sem nada
com barcos mergulhados
em oceanos testiculares

sem nada

de mão dada
às paredes curvilíneas da memória
os meus braços de prata
pacificamente acariciados
felizes
contentes
tal como os velhinhos
num vão de escada

sem nada...

Havia

Havia sorrisos nos livros que eu lia
havia palavras nos sorrisos
nos livros que eu lia
havia

manhãs em desespero
dias intermináveis
sem sonhos
sem poesia

havia

(um rio que se despedia
nos livros que eu lia)

havia sílabas
e vogais
e jornais
com palavras intermináveis
e desenhos de algodão
e outras coisas mais

havia

(um rio que se despedia
nos livros que eu lia)

e morreu
antes de nascer o dia...

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Oceano testicular


De quem são os silêncios que habitam na minha cabeça, de quem são as árvores que fazem sombra no jardim invisível da tarde, e de quem são os barcos que adormecem no oceano testicular do desejo,
- não chove e lá fora um fio de medo atravessa as mãos silenciosas da noite, o medo, que o dia se transforme infinitamente grande, infinitamente azul, infinitamente ausente, dentro de mim
“o medo morreu em 1974” Alguém suspende numa janela um pedaço de cartão, o medo de ser feliz, o medo de amar livremente as flores, as árvores e as gaivotas,
- dentro de mim ausente a sinfonia do cansaço, sento-me sobre as acácias em flor, e oiço uma voz “ainda ele brincava no oceano testicular e já eu estava preso”, e tantas coisas que brincavam nos oceanos testiculares da insónia e hoje, e hoje o medo atravessa as mãos silenciosas da noite, antes do limite indefinido da memória, antes do circo ter aportado no cais da aldeia e uma trapezista zarolha de mini-saia e avental vermelho a impingir amêndoas e beijos cor de laranja, Não percebo digo-lhe eu, O que é que não percebe pergunta-me ela, não percebo nada de amêndoas e de beijos cor de laranja, Experimente diz-me ela, Não quero experimentar digo-lhe eu,
e eu confesso que tinha medo, tinha medo de entrar na escola e saber que dentro da gaveta da secretária carunchosa adormecia a menina dos três olhinhos, “E foda-se que doía como o caraças e a mão ficava dormente o resto da tarde”, e os meus pais tinham medo e pediam a deus que eu parasse de crescer e ficasse eternamente com oito anos, Maldita Guerra Ouvia-lhes às vezes na solidão da noite,
- e felizmente que eu não parei de crescer e felizmente que a Maldita Guerra terminou, e felizmente que eu deixei de ter medo, e felizmente que o medo morreu em 1974, e felizmente que a sinfonia do cansaço hoje não veio ter comigo, e felizmente
Maldita guerra e enquanto eu me sentava no portão da entrada a contar os carros em direcção ao Grafanil, homens morriam, jovens, muito jovens, morriam, enlouqueciam, e felizmente,
“o medo morreu em 1974”,
- e felizmente que eu cresci e não fui para a guerra, e felizmente que os silêncios que habitam na minha cabeça não têm dono, são da terra de ninguém, e felizmente que a minha terra ficou livre, e felizmente que o mar é de todos e a poesia é de todos, e a terra é de quem a trabalha e o fruto é de quem o colhe, Assim ficou escrito na cartolina sobre a horta embriagada do meu vizinho,
o medo morreu, o medo...
no oceano testicular da insónia.

Sonhos risíveis – Amores impossíveis

Sonhos impossíveis
amores risíveis (o livro dos amores risíveis, Milan Kundera)
palavras dispersas
no papel achatado pela solidão da manhã
sonhos parvos em cabeças parvas
letras
muitas letras e palavras
coisas sem nexo
sonhos
impossíveis
amores risíveis
sexta-feira sem sol
e chove
e coisas dentro de mim
e coisas...
… sonhos

sexta-feira
sem livros
sem letras
sem palavras
na algibeira

sonhos impossíveis

sem palavras
sem letras

amores risíveis
amantes complexos
em quartos caquécticos

coisas
muitas coisas
muitas coisas suspensas na parede
muitas coisas suspensas na parede da solidão

antes de terminar o dia.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Tinteiro & Aparo

Segunda-feira
a caneta pesada
terça-feira
a caneta cansada
quarta-feira
a caneta deitada
(excito-a e nada)
quinta-feira
a caneta começa a escrever
e na sexta-feira
sem eu saber
a caneta desmiolada
manda-me foder

(que saudades do tinteiro e do aparo)

A voz

Oiço a voz cansada da solidão
oiço a madrugada
poisada na minha mão
e suspiros de menta
e algodão suspiros
de quem não aguenta
a tarde em cansaços
poucos abraços
nos lábios em maldição
oiço a madrugada
oiço a madrugada da solidão
e suspiros de menta
quando uma bela flor
quando oiço a madrugada
sentada à janela
e o cortinado em clamor
afugenta
tão estranha dor
ser pedra de calçada
ou berma de estrada
ser engenheiro ou doutor
ou não ser nada.

O último adeus


O último cigarro
o último Orgasmo Pulmonar
nas tuas mãos de cinza pérola adormecida
canso-me nos teus lábios
nos teus braços
e olho-te enquanto te evaporas em mim
como a chuva que se entranha no meu corpo
como o vento que leva o teu sémen

o último cigarro
o último adeus

como o vento que sacode as tuas lágrimas
que se escondem no rio
o último cigarro
que leva o teu sémen

e te digo adeus.

(decididamente vou deixar de fumar)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

“Estás no fio da navalha. Só tens duas hipóteses: deixar de fumar ou deixar de fumar...” (o meu médico de família)
Dia de inverno. Vento, frio e chuva. Pergunto-me onde estava no dia 25 de Abril de 1974; dentro de mim respondem, Na escola só de gajos com uma bata azul, edifício caquéctico, na parede as fotografias de dois velhos caquécticos e um crucifixo, e a carteira onde me sentava possivelmente a mesma onde se sentou o meu pai, ou não.

Estrutura cansada

Há um pilar de saudade
na sapata do meu peito
há uma viga de desejo
que poisa no pilar
que vive dentro do meu peito

há um pilar de saudade
que abraça a noite
e olha as estrelas

uma laje aligeirada
sobre o pilar da saudade
à procura da madrugada

há um pilar de saudade
na sapata do meu peito
há uma estrutura cansada
perdida na cidade
e sem jeito.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O corpo achatado

Foder todas as palavras que escrevo
escrever todas as coisas que fodo
sem saber
não percebendo
que nas palavras de escrever
há um verbo moribundo
um corpo achatado
não sabendo
que todo
que todo o poema está doente
sofrendo
sofrendo nas sílabas do enforcado
foder todas as palavras que escrevo
e não sei
e não se devo
e não sei se devo desistir deste mundo...

escrevo
sem saber escrever
escrevo sem saber escrever
foder
foder todas as palavras que escrevo
em todas as coisas que fodo

que todo o poema está doente
que todo o poema está doente e não sente
não sabendo
sofrendo
não sabendo sofrendo
que todas as palavras que fodo
de todo
não são gente

são palavras
não sabendo
sofrendo
são palavras felizmente.

À porta do café

Vou ao café
fico de pé
procuro na algibeira
a maldita carteira

olho a empregada
meia destrambelhada
tanta gente
porque hoje é feira
procuro na algibeira
a maldita carteira
fico de pé
e não tomo café

contente

enrolo um cigarro
à porta do café
em pé
pego na mortalha
e o canalha
um cabrão ao passar
sem me olhar
(este filho da puta está a fazer um charro)
olho a empregada
meia destrambelhada

(Vou ao café
fico de pé
procuro na algibeira
a maldita carteira)

e o mesmo cabrão
sem coração
o canalha que passou sem me olhar
a murmurar...

(é preciso ter fé)

vai ter fé ao caralho
(porque para tomar café
preciso da carteira
na algibeira)
recheada
como a empregada
destrambelhada.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

1029


Vivo na cidade dos beijos,
- Querido Francisco, as coisas por aqui vão cada vez pior, sonhei com uma placa onde jazia o número 1029, Acreditas?, com os últimos cinco euros que me restavam comprei uma fracção da lotaria com este número, Acreditas? Não saiu, nada, portanto os sonhos basicamente são uma treta, sonho com gajas que nunca vi na vida, tão pouco sei se existem, coisas estranhas, esquisitas, e o 1029 em vão... Sim meu querido, Azar ao jogo Sorte no...
vivo na cidade dos beijos, Azar ao jogo Sorte no inferno que são as ruas da cidade dos beijos, e o 1029 não saiu, pego no número e transformo-o numa matriz e obtenho triângulos rectângulos, coisas esquisitas e sem nexo, números, matrizes, equações, triângulos, muitos triângulos,
-querido Francisco
vivo na cidade dos sonhos, e ao fundo da rua vejo o rio do desejo, entre as duas margens a ponte enfeitada com lábios vermelhos, e o cabrão do 1029 não saiu, e o cabrão do 1029 numa placa de silício a martelar-me a cabeça,
- querido Francisco, as coisas aqui vão cada vez pior, sonhei...
Não meu querido, não saiu o cabrão do 1029.

O amor sofredor

Nunca soube o significado da palavra MAR
nunca vi o mar
e o amor
com dor
ao acordar
e o amor com dor
embrulhado nos lençóis da maré
amar
amar sem fé
amar amar
o mar
quando nos olhos de uma flor
com dor
quando nos olhos de uma flor
o amor
amar
o amor finge adormecer
eternamente
com dor
eternamente ausente
nas pálpebras do amante
sofredor

escrever

o amor
e o mar
o amor com dor
amar
a dor
sem mar

eternamente ausente
não sente
o amor sem mar
amar sem dor
o amor...
o amor sofredor.

Oiço-te e não consigo ver-te

Procuro-te nas almofadas da noite
entre os lençóis do mar
oiço-te embrulhada nas ondas
a brincares com as minhas palavras...
oiço-te e não consigo ver-te
e não consigo tocar-te
porque o mar em revolta
à minha volta
roubou-me o sonho
e cerrou as janelas do meu pôr-do-sol
e até a lua deixou de brilhar
e as palavras com que brincas
aos poucos desaparecem antes de acordar a madrugada
tal como eu
um louco
suspenso entre as sandálias
e os calções de infância
um louco
tal como eu
que não consegue tocar-te
que não acredita no céu
um louco
tal como eu
às voltas com o caderno da solidão
onde escrevo
onde semeio as minhas lágrimas
e escondo
um louco
tal como eu
e escondo o meu coração
de titânio
de xisto
de argamassa
um coração estupidamente só
um coração
ao abandono
sem dono
sem destino
desde menino
sentado num banco de jardim
à tua espera
(oiço-te e não consigo ver-te
e não consigo tocar-te
porque o mar em revolta
à minha volta)
sem dono
sem destino
eu um louco
que não consegue tocar-te
sentado num banco de jardim
o meu coração
a escrever versos no caderno da solidão
assim
eu tão só
tão pouco
um louco
assim
assim entre os lençóis do mar
e as noites de inferno
onde te oiço
a vasculhar o meu caderno da solidão
onde escrevo
e semeio
os guindastes da vida...

domingo, 22 de abril de 2012

Parabéns aos que tiveram a coragem de colocar no edifício da Caixa Geral de Depósitos de Alijó a tarja com a inscrição:
"Para os Berardos jogarem na bolsa: Milhões. Para a gatunice do BPN: Milhares de milhões. Para a Adega de Alijó: Morte lenta... É este o nosso banco???"

http://www.jn.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=2435583 

As mãos

As mãos
em desejo
os lábios à procura do beijo
quando a boca
nas mãos
quando a boca
se alimenta da madrugada
tão louca
ou quase nada
as mãos
em desejo
coisa pouca
à procura do beijo
as mãos
em desejo
entre lábios sem jeito
e uma boca amargurada
se alimenta da madrugada
em desejo
ou quase nada
coisa pouca
a boca
as mãos em desejo
à procura da cidade
na boca
o beijo
coisa pouca
sem maldade
entre lábios sem jeito
as mãos
as mãos entrelaçadas no leito
as mãos sem vaidade
na boca
na boca louca
o beijo
em desejo
na cidade
na cidade mergulhada na madrugada
coitada
coisa pouca
a boca
em desejo
as mãos
sem nada
sem nada descendo a calçada
coitada da boca
louca
amargurada...