sábado, 17 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

As arcadas da cidade

Despejo os dias no contentor de aço
Junto à porta de entrada do meu cansaço
Cozinho os dias na panela sobre o silêncio do mar
E o meu corpo que mergulha na algibeira da tarde
Entranha-se no vapor da solidão
Despejo os dias no contentor de aço
E mesmo lá no fundo sinto os olhos do abraço
Nas lágrimas do jantar agrafado às arcadas da cidade…
E numa rua sem saída
Os lábios dos dias despejados
E numa rua sem saída
Os dias cozinhados.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Insónia da noite

Metade de mim uma árvore despida na saudade
E a outra metade
Um rio que deixou de correr para o mar
E se perdeu nas curvas da montanha

Metade de mim uma nuvem engasgada na manhã
Quando acorda a cidade
E a outra metade
Os silêncios da maré nos sorrisos da lua

Metade de mim um poema amordaçado
Escrito na insónia da noite
Quando sinto que na outra minha metade
Os teus lábios se abraçam e cintilam junto ao mar

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenhos de Luís Fontinha)

Árvores sombrias de maio

E corria como um pássaro nos corredores da loucura, abria a janela virada para o jardim imaginário e pintava o rio entre as árvores sombrias de maio, sentava-me e chapinhava nos sorrisos da água até me cansar, cansar-se o rio da minha mão, e corria como um pássaro nos corredores da loucura,
E abria a janela,
E pegava na minha mão,
Abria a janela e pegava na minha mão quando percebia que os lábios do rio fingiam beijos e as árvores fingiam sombras,
É noite,
E da janela, do outro lado do corredor da loucura, vinha até mim o prato de sopa vazio lançado por um louco mais louco do que eu, enormeee, e o louco sorria-me e abraçava-me nos aciprestes da memória,
E corria,
Os pássaros brincavam no corredor da loucura e penduravam-se nos olhos do louco, eu, eu cruzava os braços, eu descruzava os braços, e um parvalhão de cinco em cinco minutos a perguntar-me as horas,
- Que horas são?
Pensava eu horas de comprares um relógio na feira da ladra ou do relógio ou da puta que te pariu,
- Que horas são?
O doutor também ele louco agrafado à ombreira da porta a olhar-nos, e nós, nós a cambalear cabeças e braços nos pratos engraçados e poisados sobre a mesa,
O louco mais louco do que eu atira uma frase ao doutor também ele louco,
- Oh doutor… o senhor é mais maluco do que nós,
E o parvalhão a perguntar-me,
- Que horas são?
E que sim respondia o doutor agrafado à ombreira da porta quando pratos e talhares experimentavam voos curvilíneos sobre as árvores sombrias de maio, E corria como um pássaro nos corredores da loucura, abria a janela virada para o jardim imaginário e pintava o rio,
E o jardim imaginário estava-se borrifando para mim e para o louco mais louco do que eu e para o doutor também ele louco,
- Que horas são?
E igualmente para este parvalhão.

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (desenho Luís Fontinha)

Desenhos de um poema – Luís Fontinha

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Jardim da saudade

Converso com as vozes
Que conversam comigo
E escrevo-lhes na calçada da noite
Sobre os lençóis de malmequer
No jardim da saudade
Converso com as vozes e oiço as árvores

Quando me sento no jardim da saudade
E desenho gaivotas nas folhas cansadas dos plátanos
E desenho as conversas das vozes
No sorriso do silêncio
Antes de adormecer
Sobre mim o ténue cortinado disfarçado de abraço

Que as vozes
Semeiam palavras na terra árida da minha mão
E se deitam na charrua de aço
Que corre que corre que corre para o mar
E dos rochedos perplexos e nos rochedos agoniados
Pelo cansaço da manhã

As vozes
Esqueletos travestidos de areia
Atravessam o limite da lua
E desaparecem entre os pingos sedosos da chuva
As vozes calam-se e alguém as censura
Dentro de um caderninho amordaçado no jardim da saudade

terça-feira, 13 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Fios de luz

Já desci
Até onde tinha de descer
Daqui sei que não passo…
Aqui
Aqui onde estou sentado
O olhar dos fios de luz rompe a escuridão
E vagarosamente poisa em mim
E já desci
Até onde tinha de descer
Que mais me pode preocupar?
Que já desci tudo o que tinha para descer
E não tenho a quem me abraçar…

84,1 x 59,4 (desenho de Luís Fontinha)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

84,1 x 59,4 (desenho de Luís Fontinha)

Sonhos – Luís Fontinha

Retas paralelas

Sonhos…
Retas paralelas que se abraçam no infinito
Pedacinhos de cor
Que voam em direção ao pôr-do-sol
E caiem sobre a dor do oceano
Sonhos…

Retas paralelas
Suspensas nos lábios da noite
Retas
E sonhos
À conquista do infinito
E caiem

E caiem sobre o mar.

Jardim fantasma

Deixei de ter tudo
Na gaguez das palavras
No sofrimento de um poema

Deixei de ter tudo
E hoje sou apenas uma sombra
Prisioneira na janela

E cessaram as manhãs
Que me visitavam
E traziam-me as palavras e as cores do oceano
Depois de a noite mergulhar no jardim fantasma
Na cidade imaginária
Deixei de ter tudo

E percebo que nunca tive nada.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

domingo, 11 de dezembro de 2011

Compartimento dos sonhos

Vagueio miseravelmente no compartimento dos sonhos
E das teias de aranha da infância
Em Luanda
Pego no mar
E pinto-o na minha mão
Antes de acordar

Vejo-me sentado na marginal
Agachado na sombra de um coqueiro
À espera que o mar me venha buscar
Que o mar pintado na minha mão
Sorria para mim
Sorria sem me acordar

Vagueio miseravelmente no compartimento dos sonhos
E das teias de aranha da infância
Em Luanda
Pego no mar…
E um papagaio de papel
Poisa sobre mim e sorri

Sorri sem me acordar.

84,1 x 59,4 (desenho de Luís Fontinha)
Aos poucos corri com os amigos da minha vida,
Hoje, hoje limito-me a ouvir os pássaros e a olhar as árvores e a recordar uma calçada frente ao rio,
Aos poucos fiquei pendurado entre o silêncio e a noite, aos poucos, aos poucos desapareceram os sonhos… e sentado na solidão pinto o mar de Luanda nas minhas mãos.