sábado, 19 de novembro de 2011


59,4x 84,1 (desenho de Francisco)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

O barco de papel

Um barco de papel
Cruza o oceano
Um barco que nasceu
Das mãos de uma criança
Um barco de papel
Cruza o oceano
E o cordel
Que o amarra às estrelas
Balança
A criança olha-o e ele extingue-se
Nos lençóis da noite
E assim vim de Angola…

Vim de Angola num barco de papel
Preso às estrelas penduradas no céu
Construído por mim
Eu em criança sonhava
E do papel fazia barcos
E papagaios…

E o céu tinha muitas estrelas
Onde prendia os meus barcos de papel
Onde guardava os meus papagaios de sorriso amarelo
E cruzava o oceano sentado debaixo das mangueiras…
Chamava pelo mar
E sentia o Mussulo na minha mão.

Círculo de luz

Um círculo de luz
Poisa na janela da noite
E do meu corpo as palavras
Escrevem-se no espelho da lua
Oiço-te
Oiço os teus desejos misturados na auréola do poema

Oiço-te
Oiço o balançar das estrelas entre os teus dedos
E nas tuas mãos o poema mingua
O poema mingua no sedoso mel dos teus lábios…
Entra a noite em nós
E o teu corpo abraça-se ao pôr-do-sol

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O fim do poema

Será o poema
Amante do poeta?
E se o poeta despir o poema,
Sílabas para um lado,
Vogais para o outro,
E se o poeta
Fizer amor com o poema?

E se o poeta pegar nas palavras
E se o poeta fumar as palavras
Antes de adormecer…

E se o poema se masturbar nas palavras?

E se às palavras nascerem asas
E às abelhas poemas
E aos poemas sombras de sémen…

Fodeu-se o poema
Nas mãos do poeta.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Uma rua sem saída

A vida
Um milímetro quadrado de escuridão
Uma rua sem saída
Dentro da cidade solidão,

A vida
Um centímetro de nada
A vida na vida
Um milímetro quadrado de escuridão
Perdido na madrugada
A vida
O pular do coração
Numa rua sem saída…

Ai esta minha vida sem madrugada
A vida
Um centímetro de nada
A minha vida
Uma pedra de calçada
Que corre para o mar
Ai esta minha vida sem madrugada
Que não se cansa de chorar.

Inabilitado

Sou um inabilitado
Sentado no banco de jardim
Sou um plátano cansado
Sou um barco encalhado

Nos sorrisos da manhã
Sou um inabilitado
E que vagueia na garganta da montanha
Sou um plátano cansado

Sentado no banco de jardim
Sou um inabilitado
Que sonha com o mar…
E o mar foge de mim.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha/MiLove)

A morte

Morri.
Morri, acreditava eu,
E dentro da caixa de sapatos onde habito
Com paredes de papel
E uma tampa de vidro,
Hoje, hoje não sol,

Morri, acreditava eu,
Acordei e não vi o meu corpo
E a janela do mar
Desapareceu,
E eu,
E eu morri,

Acreditava eu,
Morri,
E uma pedra vermelha poisou sobre a minha mão
De poeira azul,
Morri,
E as paredes de papel da caixa de sapatos em chamas,

E na tampa de vidro
Um plátano abraçado às lágrimas da manhã,
Morri,
Morri, acreditava eu,
E tenho saudades da janela do mar
Quando corria o cortinado e um sorriso vinha até mim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Porquê Orgasmos Literários

Crónicas de um travesti: orgasmos literários (2)
Cento e cinquenta euros por noite, com duas danças acrobáticas no palco, um sorriso nos lábios encharcados de batom encarnado, e da cabeça a fervilhar de poesia uma cabeleira loira, postiça, duas voltinhas apenas e levantar a saia, Marilu chegava a casa estafada, ele ia apontando no suor das mãos pequeníssimas frases, que quando ema casa, já madrugada, construía poemas nas paredes em lágrimas, e a Marta a essa hora andava sorridente pelas nuvens, dormia, sonhava, sonhava com comida, mas dos cento e cinquenta euros do pai apenas ficavam migalhas, Margarida furiosa com o Vicente, Marilu despegava da noite, Vicente de orgasmos espasmos em sílabas,
- não é fácil ser-se eonista e poeta,
Não é fácil ser-se Vicente nas ruas amontoadas de sombras aos encontrões no desespero, Margarida entupida na tosse mais parecendo a tempestade dos finais de tarde em Luanda, Marilu sonhava, Marilu tinha projetos para o futuro, mas do futuro apenas regressava miséria, não é fácil ser-se Marta, e a Marta na ausência do pai,
- pai, tenho fome,
Tenho fome e tu vestido de mulher, tenho fome e dos teus cento e cinquenta euros nada, népia, e sabes?
- na minha ilha deixou de haver madrugada, os pássaros escondem-se nas grutas, o sol nunca mais acordou, e a lua, a lua nunca mais a vi, acreditas?
Acredito que me afundo aos poucos na saudade de ontem, acredito que um dia vou conseguir, mas hoje não me apetece, hoje cansado, hoje cansada de andar em saltos altos e arreganhar os dentes para uns palermas que na primeira fila queriam apalpar-me as maminhas postiças, hoje acredito que a Margarida,
- e não trazes comida hoje?
E hoje eu cansado, hoje não,
- comprei uns livros, telas e tintas, estava a precisar…
Hoje não.
- Pai, tenho fome.
Hoje não.
Hoje não palavras dentro de mim, e hoje não a Margarida,
- e não trazes comida hoje?
E ontem eu afogado nas palavras, subiam-me corpo acima e puf… as sílabas escarrapachadas nas paredes em lágrimas,
Mas hoje não,
- hoje não comida,
Pai tenho fome,
- e hoje não.
(texto de ficção)

Marilu
11 de Março de 2011

A oração

Alguma coisa vai acontecer, pensava eu,
Descerro os cortinados da noite, abro cuidadosamente a janela, e nada, não aconteceu nada,
Alguma coisa vai acontecer, pensava eu, e todas as noites antes de adormecer poisava entre os lírios travestidos que passeavam na rua junto ao rio, e antes de adormecer, todas as noites antes de adormecer não acontecia nada,
O quarto descia a avenida e o espelho do guarda fato sorria-me,
- Amanhã vai acontecer,
E o candeeiro que acabava de se desviar do meu quarto que descia a avenida, e junto ao rio,
- Amanhã vai acontecer,
E hoje
E hoje quando acordo,
Nada,
Não aconteceu nada,
O dia de ontem uma fotocópia do dia de hoje,
- Amanhã vai acontecer, pensava ele enquanto descia a avenida junto ao rio e se desviava do candeeiro semeado no centro do passeio, pensava eu,
Que ignorante semeia candeeiros no centro de um passeio onde caminham quartos, salas de estar, cozinhas e corredores?
Para não falar nas varandas e nas casas de banho,
Alguma coisa vai acontecer, pensava eu,
- Amanhã vai acontecer,
O quarto acorda e uma mão cansada poisa no meu rosto,
- Bom dia filho,
E nada, hoje quando acordei não aconteceu nada,
- Bom dia meu filho dormiste bem?
E eu, e eu respondo-lhe,
- Sinceramente mãe se dormi bem? Descerrei os cortinados da noite, abri cuidadosamente a janela, e nada, não aconteceu nada,
E claro que não dormi bem,
Alguma coisa vai acontecer, pensava eu,
E repetidamente antes de adormecer como se fosse uma oração Alguma coisa vai acontecer Alguma coisa vai acontecer Alguma coisa vai acontecer Alguma coisa vai acontecer Alguma coisa vai acontecer,
Alguma coisa vai acontecer, pensava eu,
E nada,
Nada acontece.

(texto de ficção)

59,4 x 84,1 (Luís Fontinha/MiLove)

Toque mágico

Um toque mágico
Um simples sorriso nos lábios
Um toque mágico
Quando o pôr-do-sol
Se abraça à maré
E o mar galga montanha acima,

Oiço a tua voz seminua
Na claraboia do meu desejo
Oiço-te
E com um toque mágico
Um beijo poisa sobre as mãos trémulas da noite
E o mar,

O mar galga montanha acima
E oiço-te
Entre a janela e o cortinado
Oiço a tua voz seminua
A pedir-me um toque mágico…
Ao cair da noite.